Debate Qualificado pelo CFA – Conselho Federal de Administração sobre o tema Terceirização, realizado no dia 6 de agosto de 2015, no Hotel Vale Verde, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Como introito ao tema “Terceirização”, gostaria de preliminarmente apresentar a este ilustre plenário de conselheiros federais do CFA dois testemunhos pessoais que, certamente, atuarão como pano de fundo, como quadro de referências de toda a minha exposição aqui hoje em Campo Grande, neste Debate Qualificado.
Testemunho 1: Riocentro
Há bem mais de uma década, fui nomeado pelo prefeito da Cidade do Rio como presidente do Riocentro, centro de convenções nacionalmente conhecido pelo absurdo atentado terrorista de 1º de maio de 1981.
Diferentemente do que é hoje, ainda à época em que exerci a presidência do Riocentro, era um local ermo, isolado e insulado do ir e vir da cidade.
Por isso, o Riocentro, desde a sua criação em 1976, disponibilizava aos seus servidores um eficiente serviço de transporte de ônibus para diversos pontos do Rio. Claro: esse serviço só era disponível para os funcionários efetivos, vedado aos empregados terceirizados.
O mesmo se dava com os restaurantes disponíveis no Riocentro: serviam aos funcionários, mas não aos terceirizados. Obviamente que a mesma discriminação se dava, inclusive, no serviço médico do órgão, num tipo de equipamento cujas atividades são bastante propensas a acidentes de trabalho e a ocorrências similares de saúde, repito, numa organização localizada numa região distante de tudo.
Ao constatar tal realidade, julguei que não teria dificuldades de estender os serviços e tais benefícios aos terceirizados, que atuavam em caráter permanente, independentemente da existência ou não de eventos.
Ledo engano! Em geral, não houve resistência dos funcionários do Riocentro, pelo contrário. O problema se deu nas negociações com o sindicato, que explicitamente resistiu a incorporar tais trabalhadores sob a alegação de que não pertenciam à sua base. Alegava que os terceirizados não poderiam ser sindicalizados e, portanto, não poderiam pagar as contribuições sindicais devidas, incapazes assim de serem incluídos em suas bases.
A questão se resolveu, ou melhor, se atenuou à revelia da legitimidade da solidariedade sindical pretendida. Uma postura sindical corporativista, atrasada, anacrônica, insistia em privar os trabalhadores terceirizados do Riocentro de usufruírem de direitos óbvios de transporte, de emergência médica e de alimentação normalmente conferidos aos funcionários de carreira.
Testemunho 2: CRA-RJ
- Soninha e Sr. Manoelzinho são servidores terceirizados do serviço de limpeza do CRA-RJ há décadas. Queridos por todos, eficientes e discretos. Anseiam apenas ter acesso aos benefícios extrassalariais de proteção à saúde, alimentação e transporte normalmente atribuídos aos servidores efetivos. Resistência: o sindicato majoritário dos servidores do Conselho não se dispõe a estender aos servidores terceirizados por acordo sindical os mesmos benefícios assegurados aos efetivos. Tantos anos depois, o mesmo anacronismo do velho sindicato majoritário relatado no Riocentro reedita-se na mesma expressão do que há de pior no corporativismo sindicalista aristocrata.
O movimento sindical se une, contrario sensu, na postura do atraso, de corporativismo deletério, de fracionamento e divisão dos trabalhadores, no concentracionismo dos privilégios de uns em detrimento de outros. Em vez de essencialmente proteger, lutar e garantir direitos de todos, opta pela corporação de ofícios de seus sindicalizados apenas. Aos terceirizados, que se virem na sua precariedade de relações de trabalho!
A velha máxima convocatória à união e à solidariedade na luta do Manifesto Comunista em 1848, de Marx & Engels, foi realmente jogada no lixo da história: “trabalhadores do mundo, uni-vos, nada tendes a perder, exceto vossos grilhões”, há muito foi esquecido por um esquerdismo fascista – de corporações de ofícios – protagonizado pelo movimento sindical brasileiro.
A questão da regulação do trabalhado terceirizado no Brasil, com uma resistência quase histérica de parcela expressiva do sindicalismo fascista da esquerda brasileira, reedita a mesma situação relatada por mim na tentativa de extensão de benefícios aos trabalhadores terceirizados no Riocentro, bem-sucedida, mas a custo de muito esforço e luta, e malsucedida ainda hoje no CRA-RJ.
O Sr. Manoelzinho e D. Soninha se sentem, em verdade, como párias, discriminados como terceirizados no Conselho por não terem acesso aos mesmos benefícios desfrutados pelos funcionários celetistas efetivos.
Somos aqui 27 conselhos regionais, certamente essas mesmas circunstâncias de desrespeito e de precarização aos trabalhadores terceirizados se repetem em quase todas as nossas entidades. Esta questão de terceirização não é um problema apenas dos outros, ela também esta dentro de nossas casas, é vivida em nosso cotidiano. E por ser comum ao mundo dos negócios e à administração pública, deve ser pauta prioritária de debate e de ações do nosso Sistema CFA/CRAs.
Precarização do trabalho
Ao se debater o trabalho terceirizado no Brasil e a sua regulamentação proposta pelo PL 4330/2004, em verdade, precisamos focar prioritariamente a questão da “precarização do trabalho”, uma das formas mais insidiosas e dissimuladas de discriminação de uma parcela expressiva de cidadãos trabalhadores de nosso país.
Estima-se que existam entre 12 e 15 milhões de trabalhadores terceirizados no Brasil atualmente. Não me refiro ao trabalho informal, subterrâneo, clandestino, existente na realidade econômica, destituído absurdamente de quaisquer direitos. Refiro-me aos trabalhadores terceirizados, até quarteirizados, sempre dedicados a um trabalho formal, mas igualmente precário e discriminado.
A variação de 12 a 15 milhões, dependendo da fonte, apenas agrava o problema pela absoluta falta de credibilidade de nossos dados estatísticos. Mas, certamente, os terceirizados no Brasil não são menos do que 12 milhões de pessoas. É claro: a economia informal é muito maior ainda, o que exponencia a gravidade alarmante das desigualdades sociais de nossas relações de trabalho, em que pese a tão decantada excelência de nossa legislação trabalhista, rebento da ditadura Varguista do Estado Novo, em pleno apogeu do totalitarismo político e social em todo o mundo.
Esta é uma questão que está a exigir solução no Brasil há décadas. O próprio PL 4330 tramita desde 2004, sem quaisquer perspectivas de resolução.
O foco principal desse PL 4330 é a desprecarização do trabalho terceirizado em nosso país e não mais manter os privilégios e prerrogativas de um sindicalismo démodé, anacrônico, prevalecente em nossa realidade laboral.
Esta questão que se arrasta há tanto tempo em nosso país, já foi equacionada em todo mundo desenvolvido desde os anos 50/60 do século passado.
A Itália, por exemplo, fonte inspiradora do direito trabalhista brasileiro, através da “Carta Del Lavoro” dos tempos fascistas de Mussolini, tem hoje mais de 20 tipos distintos de contrato de trabalho. Aqui no Brasil, paramos no tempo, continuamos mantendo apenas um só – o contrato estável, de carteira assinada por prazo indeterminado, oriundo dos primitivos tempos da edição da velha CLT de 1943, para um país agrário, monocultor de café e que à época dispunha de um processo industrial e de serviços bastante incipiente.
Contrato Individual X Contrato Coletivo
Continuamos presos à inflexibilidade do contrato individual de trabalho enquanto a tendência em todo o mundo é estimular o contrato coletivo.
É claro que o contrato individual fragiliza ainda mais o trabalhador nas relações de trabalho com o empregador. O equilíbrio de forças de uma parte em relação à outra é absolutamente desproporcional.
Origem da CLT
– Anterior à Usina de volta Redonda, Vale do Rio Doce, Companhia Álcalis;
– País agrário, monocultor de café;
– Oliveira Vianna: inspiração fascista da “Carta Del Lavoro”, de Mussolini;
– Justiça tripartite, com juízes vogais representantes dos sindicatos dos trabalhadores e dos sindicatos dos patrões e um juiz togado representante do Estado;
– Usada para apassivar o movimento sindical emergente, principalmente os de origens comunistas e anarquistas presentes em São Paulo, no Rio de Janeiro e nos estados do sul do Brasil;
– Sindicatos, federações e confederações de trabalhadores e de patrões financiados pelo imposto sindical;
– Centrais sindicais também compartilham hoje desses generosos recursos extraídos da classe trabalhadora;
– Usada para apassivar o movimento sindical: o Brasil dispõe dos mais baixos índices de sindicalização. Vivemos ainda um sindicalismo cartorial, salvo poucas exceções, que apenas confirmam a regra;
– Taxas sindicais:
. Contribuição Sindical, o velho imposto sindical.
. Contribuição Confederativa, instituída pela Constituição de 88 sob a justificativa de extinguir a contribuição sindical.
. Contribuição Assistencial, instituída sob a justificativa dos acordos coletivos e negociações sindicais.
. Contribuição Associativa, obrigatória apenas para os sindicalizados.
Assim, incluindo o Imposto Sindical, o sindicalismo dispõe de 5 contribuições distintas e cumulativas, sendo obrigado a prestar serviços apenas aos sindicalizados.
As Novas Relações do Trabalho
As tecnologias avançam à velocidade orbital. A mentalidade das relações de trabalho se arrasta à velocidade do carro de boi.
As mudanças tecnológicas provocam obsolescência de mentalidades e de conceitos, de habilidades e de competências, e também de atitudes tanto de empregados quanto dos empregos.
Grande parcela dos atuais empregos será substituída nos próximos anos por robôs, drones e toda uma miríade de sistemas tecnológicos que, cada vez mais, se encarregam dos deliveries; “por clientes” que em todos os campos e lugares desempenham crescentemente o trabalho dos empregados, substituindo a mão de obra empregada.
É o restaurante a quilo, que mata o emprego do garçom. É o Uber que tira o emprego do taxista. É o check in feito diretamente de casa, do escritório ou do smartphone, que mata o emprego dos agentes de viagens e dos atendentes nos aeroportos. E assim tudo se repete em todas as atividades da vida moderna.
As tecnologias determinam novas formas de trabalho e de trabalhar. O trabalho não se resume mais ao emprego convencional de carteira assinada com vínculos certos por prazo indeterminado: jornada certa de trabalho, subordinação hierárquica e dependência econômica já não podem mais ser as condições objetivas das relações de trabalho. Isto era válido para os idos dos anos de 1940, mas não mais subsistem, há muito, na realidade atual do mundo globalizado.
A produção moderna é feita basicamente em redes ou cadeias globais de produção, que combinam várias empresas em parceria, em múltiplos tipos de relações de trabalho. Não mais apenas a velha carteira assinada.
Embora o emprego fixo por prazo indeterminado continue ainda a ser o vínculo mais expressivo em todo o mundo, as atipicidades e variadas formas de relações de trabalho cada vez mais assumem a proeminência e o protagonismo no mundo do trabalho. A variedade de distintas formas de relações de trabalho é a nova realidade em todo o mundo.
Este é o caso do trabalho temporário, do trabalho terceirizado, do trabalho quarteirizado, do trabalho intermitente, do trabalho casual ou eventual, do avulso ou por tarefa, do trabalho a distância, do trabalho part time ou full time.
Neste admirável novo mundo, como conter essa distinção e diferenciação tão heterogênea de relações de trabalho?
A carteira assinada convencional decorrente do contrato individual, numa relação estrita entre empregador e empregado, foi originalmente concebida e formatada para a rotina e a repetição, para a homogeneidade e a semelhança, para a certeza de relações de trabalho estáveis e fixas, pensada para o trabalho por prazo indeterminado de forma habitual e convencional, para uma única e exclusiva forma de trabalho. Pressupõe sempre o horário certo de trabalho, a jornada definida, a subordinação hierárquica e a dependência econômica do empregado ao emprego.
Diferentemente, hoje o sucesso das organizações depende substantivamente das cadeias produtivas globais ou das redes de produção de valor, independentemente de onde esteja o trabalho e o trabalhador.
No Brasil, o velho e repetido exemplo empresarial de compreensão dessa nova realidade contemporânea globalizada certamente é a Embraer, orgulho para todos os brasileiros. E espero que não seja o único. Talvez não! O complexo empresarial de Paulo Lehmann, da Ambev, demonstra que há outros exemplos também no Brasil. Mas são muito poucos, pouquíssimos.
O gap entre a velocidade orbital do foguete e da carroça do carro de boi na realidade brasileira das relações de trabalho alarmantemente se reedita tanto na academia quanto no chão de fábrica: ambos mantêm uma visão passadista de um tempo que não mais existe no mundo dinâmico do trabalho em todo planeta. Ideias generosas para uma realidade utópica que, em verdade, jamais existiu: pensam como se ainda estivéssemos nas primeiras décadas do século XX.
A Nova Realidade Global
Parcela ponderável dos movimentos sociais brasileiros demonstra uma enorme dificuldade em compreender essa nova realidade global. E quem não compreende o ambiente em que transita tende a rejeitá-lo, quando não a hostilizá-lo. Reage ao novo, mesmo quando este novo já é o óbvio. Teme perder privilégios, aferra-se à certeza confortável de um passado que tenta fazer viver no presente. Pretende dar vida ao que morre em todo o mundo, não só no Brasil. É preciso aprender a compatibilizar o que se pratica no chão de fábrica com o que se ensina na academia. É preciso compatibilizar o Brasil com o mundo desenvolvido.
A visão terceiro-mundista prevalecente no mundo dos negócios, nos sindicatos de empregados e de empregadores, nos movimentos sociais em geral, no conjunto da sociedade brasileira e até na própria academia, nos leva a compararmo-nos ao mundo subdesenvolvido, a ter com opção de destino ser, como país, apenas a vanguarda do atraso, líder dos países periféricos.
O Professor e especialista em relações de trabalho José Pastore nos relata que na Coreia do Sul, em 2012, ele presenciou um carro ser montado na Hyundai em 57 segundos. Na Alemanha, na mesma época, viu um Mercedes Benz ser montado em 21 segundos. A produtividade do brasileiro é quatro vezes menor do que a do trabalhador americano. Mas vocês dirão, mas a Honda, na Zona Franca de Manaus, monta uma moto também em cerca de 20 segundos. Que ótimo! Pena que o parque industrial brasileiro, em franco processo de desindustrialização, não seja uma enorme Zona Franca de Manaus, com seus pretensos índices de produtividade.
É preciso haver combinação de diferentes formas de trabalhar, em que o empregado estável por prazo indeterminado (a nossa conhecida carteira assinada) seja apenas uma particularidade dentre uma variedade e constelação de distintas novas formas de relações de trabalho, que devem ser um verdadeiro caleidoscópio, em distintas expressões da realidade de como se trabalha.
Existem atividades terceirizadas no local da contratante. Existem atividades terceirizadas executadas no local da contratada tanto quanto na empresa terceirizada, longe da contratante. Existem atividades terceirizadas realizadas sob subordinação da contratante. Existem atividades terceirizadas a distância. Há contratos em que os empregados terceirizados servem apenas a uma contratante. Em outros casos, esses terceirizados servem a distintos contratantes. Em muitas situações, cumprem tempo integral na contratante, noutras não.
Muitos terceirizados pertencem ao quadro fixo da terceirizada, mas muitos são apenas trabalhadores avulsos e eventuais, chamados para tarefas específicas episódicas.
Nos contratos terceirizados há pessoal que vai e vem, que sai e volta, que entra e sai, que entra e nunca mais volta.
A força de trabalho terceirizada apresenta, assim, diferentes composições, conforme os distintos contratos em que opera. A heterogeneidade é a marca de nosso tempo.
Há atividades laborais realizadas pela terceirizada numa jornada normal de trabalho da contratante; e há outras que precisam ser realizadas fora das jornadas normais de trabalho da contratante, como, por exemplo: manutenção, limpeza, conservação e suprimento, logística.
As Relações de Trabalho: Caleidoscópio
Tornam-se cada vez mais comum a mistura de atividades fabris, com comerciais, com as de serviços ou executadas simultaneamente pelas mesmas empresas.
Já vão longe, mas muito longe mesmo, os velhos conceitos de empresas originalmente concebidas para serem empresas de atividades primárias, secundárias e terciárias. As empresas cada vez mais fazem de tudo.
Qual o negócio da Coca-Cola? Produzir diretamente o refrigerante ou o xarope para o seus distribuidores franqueados? Será que o negócio das Adidas é realmente produzir tênis? Qual é o negócio da Apple?
Por que os EUA e muitos países europeus transferem suas fábricas para a Ásia, África e América Latina?
O processo produtivo mundializado está cada vez mais terceirizado e quarteirizado. O Brasil precisa descobrir essa obviedade e se inserir firme e decididamente no processo global de produção.
A Toyota, no Japão, trabalha com cerca de 500 fornecedores fixos, simultaneamente. Estes, por sua vez, dividem a tarefa de montagem de um carro com mais de 3.000 empresas de autopeças, que, por sua vez, subcontratam 20.000 empresas produtoras de pequeno porte.
Todas as atividades produtivas estão envolvidas em cadeias globais de produção em todo o mundo: cadeias produtivas globais ou redes globais de produção.
É o carro globalizado, construído por peças e componentes oriundos de todo o mundo.
Por isso, se pode produzir em média um carro ou uma moto, ou não importa o que for, em poucos segundos. Esta realidade espantaria Henry Ford, criador da linha de montagem e da incorporação no ritmo no processo de produção, que nos proporcionou a escalada da produção em massa aos primeiros anos do século XX.
A nova lei de terceirização, proposta através do PL 4330/2004 é apenas um passo tímido e limitado do Brasil em direção a esse futuro, já presente, como disse, em todo o mundo desenvolvido. Mas é apenas um passo, talvez um passinho constrangido e temeroso. Inseguro, pouco ousado. Mas um passo decisivo!
O grande desafio é como regular esses novos arranjos, essas novas relações de trabalho face às leis vigentes ainda aqui no Brasil, já que concebidas e operacionalizadas para um tempo que, claramente, deixou de existir há mais de 80 anos, portanto.
A CLT esta voltada para um passado que deixa de existir, se ainda existe. Esta legislação trabalhista convencional garante contraditoriamente tratamento igual e uniforme, trabalhista e previdenciário, a circunstâncias tão distintas como um trabalhador de uma fábrica ou como de uma atendente balconista com jogadores de futebol profissional e atores televisivos globais. O anacronismo de direitos e obrigações trabalhistas e previdenciários com a carteira assinada de um astro de futebol ou de um ator de TV com um balconista ou um operário de linha de montagem é a explicitação objetiva da insensatez.
Projeto de Lei 4330/2004 – Terceirização
Vocês me perguntam: este PL 4330/2004 está na direção correta ou apenas é um ataque aos direitos e garantias ao trabalho, tão bem insculpidos na nossa CLT? Eis aí uma questão reiteradamente colocada em todos os cantos.
Eu lhes respondo: em verdade, esse PL 4330 vai na direção correta, vai contra a vanguarda do atraso, a marcha da insensatez representada pelos interesses de tantos quantos pretendem manter o passado presente, o status quo eternizado.
Há uma esdrúxula, extravagante e bizarra aliança no Brasil hoje em favor de bloquear a modernização da nossa economia, que precisa ir a favor do progresso, em direção aos conceitos e às práticas atuais da gestão e da economia do mundo desenvolvido. Precisamos passar a praticar, fazer e a tratar gerencialmente e legalmente em nosso país o que já é o feijão com arroz da vida econômica globalizada: como bem disse Peter Drucker, “não há país subdesenvolvido, há país subadministrado”. A nova lei finalmente propiciará uma nova forma de gestão dos trabalhadores terceirizados em nosso país.
Como ficará o PL transformado em lei pelo Congresso? Bem, isso eu não sei, mas o conceito básico inscrito no PL está na direção correta. É um passo essencial.
Quando avalio os resultados previsíveis de qualquer projeto de lei em tramitação numa casa legislativa, sempre me socorro da velha máxima de Bismarck: “se o povo soubesse como são feitas as salsichas e as leis, não comeriam salsichas nem acreditariam em leis”.
Vamos ver como vai se transformar este PL 4330 em lei, mas não há dúvidas de que estamos na direção correta, daí porque tanta reação contrária daqueles que querem manter a situação vigente.
É evidente que a nossa profissão não pode ficar ausente deste debate. A CLT, que à época, em 1943, era muito progressista e avançada para o Brasil daquele tempo, hoje não mais atende às nossas necessidades, pior do que isso, atravanca o desenvolvimento. A nossa realidade econômica e social 80 anos depois impõe novos conceitos e práticas, novas leis e novas regras, necessariamente contemporâneas com o mundo da globalização em que vivemos.
Novas circunstâncias, novas realidades precisam ser atendidas e consideradas nos regramentos protetivos e facilitadores do trabalho. Dentre estes se destaca proteger e desprecarizar o trabalho terceirizado.
Se considerarmos hoje o Brasil como a 7ª economia do mundo, que abrigamos uma população de mais de 200 milhões de habitantes vis-à-vis à época da edição da CLT em que tínhamos apenas cerca de 30 milhões de habitantes e uma economia incipiente, agrária e monocultora de café, pode-se facilmente compreender que aquele Brasil há muito não existe mais. Mas essa quimera passadista é permanentemente revisitada numa CLT que teima em se manter inalterada, dando vida ao que não mais pode existir. É preciso contemporizá-la aos tempos presentes.
Manter a atual realidade das relações de trabalho significa congelar o passado-presente, manter à margem das leis protetivas do trabalho as imensas legiões de trabalhadores terceirizados, cuja precariedade clama por um brado de libertação e de cidadania.O trabalhador terceirizado é o novo pária das relações de trabalho no Brasil. É preciso desprecarizar com as devidas proteções o trabalho terceirizado.
Então, você me pergunta: “O Brasil precisa realmente regulamentar as relações do trabalho terceirizado? É realmente necessária uma lei de regulação da terceirização? Não seria melhor esperar um pouco mais para ver quais rumos vão ser naturalmente tomados?”
A terceirização é uma realidade presente em todo o mundo, e também no Brasil, obviamente. É claro – não poderia ser diferente também aqui:
– Existem em nosso país mais de um milhão de empresas de prestação de serviços terceirizados e até de quarteirização;
– Estimam-se de 12 a 15 milhões de trabalhadores terceirizados atualmente existentes;
Não reconhecer esta realidade e adotar as regras adequadas de proteção para tantos trabalhadores terceirizados, e também de adotar regramentos de funcionamento e até a imposição de limites e de constrangimentos para tantas empresas terceirizadas, é continuar a incidir no despropósito e na desfaçatez.
Alerto ainda: parcela substantiva dessas empresas tem em seu objeto social a obrigatoriedade de registro em nosso sistema CFA/CRAs, o que alavanca ainda mais as nossas responsabilidades e compromissos de engajamento e envolvimento na mudança do atual quadro de circunstâncias.
Há muita gente apresentando o status quo da existência, nos termos atuais, do trabalho terceirizado como uma das nossas vantagens competitivas, como se tal fosse uma de nossas virtudes. Foi assim também com a escravatura: era importante para manter o equilíbrio da economia agrária do Império ativa e forte por meio da exploração do braço escravo. Por isso, Brasil e Cuba foram os últimos países a libertar os escravos africanos em todo o mundo. É assim também hoje com diversas formas de exploração do trabalho indecente, do trabalho do menor, da mulher, do idoso, do portador de deficiência, e, por que não, também do trabalho terceirizado. Estamos sempre a reboque da história! Não há justificativa para tratamento tão desigual com os trabalhadores da prestação de serviços terceirizados em nosso país. O empregado da contratante e o da terceirizada devem ser parceiros, receber tratamento equitativo, de mesma natureza. Apenas o que os distingue é a natureza jurídica das relações de trabalho que mantém com o contratante.
Avançamos bastante em relação às regras da família: casamento do mesmo sexo, adoção de crianças, relações monoparentais. Mas reagimos no mundo do trabalho à contextualização do Brasil com o que se faz há décadas nos países desenvolvidos. Resistimos a nos incorporarmos à sociedade globalizada.
Esta é uma questão que não se discute no 1º mundo desde os anos 1950/1960, logo após a II Guerra Mundial. Está resolvida.
Paradoxalmente aqui entre nós, aqueles que defendem os avanços, com razão, no campo da família, mesmo nos sindicatos e nos movimentos sociais, são os mais fervorosos opositores à desprecarização do trabalho terceirizado.
É claro que há muitas organizações de terceirização de serviços que são sérias e respeitadoras da legislação básica do trabalho. Mesmo assim, ficam à mercê dos despropósitos de uma atividade não regulamentada, portanto sempre afeita a toda sorte de aventureiros, picaretas e ilicitudes.
É preciso garantir, repito, aos empregados terceirizados o mesmo tratamento dado aos empregados da contratante.
É preciso desprecarizar através da edição de uma legislação protetiva própria. É nesta linha que se dirige o PL 4330/2004.
Atividades Fins X Atividades Meios
Outra questão bastante controversa é a possibilidade de terceirização de atividades meio, mas a proibição para atividades fins. Eis aí mais uma atipicidade brasileira. É a reedição da velha história da jabuticaba, extravagância que só existe no Brasil. Por que terceirização só para atividades meio? Qualquer coisa que só exista no Brasil tem de ser besteira.
CRA-RJ Itinerante/Van Itinerante
O motorista da van pode ser terceirizado, mas os funcionários que atendem as empresas, os administradores, os tecnólogos e os estudantes têm que ser obrigatoriamente do quadro de carreiras do Conselho. Mas por que? Porque realizam atividades fins: expedem através de um sistema online, via web, diplomas e certidões, carteiras e declarações, recebem pagamentos de anuidades etc. O TCU não deixa! Há uma Súmula 331, do TST, que assim o estabelece.
Mas a expedição de passaporte na Polícia Federal se faz sempre por funcionários de carreira, ou, na sua maioria, são servidores terceirizados?
E a imigração nos aeroportos, nas rodovias e nos portos brasileiros, não há terceirizados?
E na Justiça do Trabalho, não há terceirizados? Estima-se em 25% a mão de obra terceirizada na Justiça do Trabalho no Rio de Janeiro. Bem, o mais das vezes, os juízes multam dirigentes que se valem da terceirização, mesmo sendo eles próprios amiúde assessorados por terceirizados.
Presídios em muitos países e em alguns estados no Brasil se valem de serviços terceirizados.
E as forças militares em luta no Afeganistão ou na Síria, muitos não são terceirizados? O que dizer da gloriosa Legião Francesa?
Terceirizados são os serviços de vigilância em todo o Brasil, atingindo contingentes bem superiores aos efetivos da própria Polícia Militar e das guardas municipais.
Súmula 331 do TST
Sei que você logo vai me perguntar sobre a Súmula 331, do TST, que permite apenas a terceirização para atividades meio e não para atividades fins, com afirmei há pouco. Você dirá: “essa súmula já não resolve adequadamente essas questões controversas das atividades meio e fins da terceirização?”
Realmente o TST trata da terceirização apenas para atividades meio e não para atividades fins. Essa Súmula 331 hoje está em análise no STF para decidir se efetivamente o TST pode expedir súmulas nesta matéria. A decisão final do STF pode anular essa súmula ou não. É urgente esperar a decisão do Supremo, nem sempre célere em questões análogas. De qualquer forma, esta Súmula 331, do TST, continua sub judice no STF.
Quando a Petrobras coloca uma sonda para explorar um poço de petróleo no mar, no pré-sal, ou em poços de petróleo na terra, ela esta terceirizando atividades meio e atividades fins. Quando a Embraer monta componentes de um avião produzidos em diversos países, ela esta terceirizando atividades meio e atividades fins.
Em verdade, essa Súmula 331, do TST, desconhece profundamente a realidade econômica global. Aferra-se a conceitos ultrapassados de verticalização dos processos operacionais das organizações. Desconhece os elementos mais precípuos da economia moderna.
A economia se organiza em cadeias globais de produção, em redes produtivas, que englobam indistintamente atividades meio e atividades fins. Aliás, este é um tema essencial de gestão e do administrador profissional. Este é o tema do nosso tempo, fulcro de qualquer ação do Sistema CFA/CRAs.
Se os ministros que prolataram a Súmula 331, do TST, tivessem lido um livro, dos idos dos anos 2000, de autoria de Thomas Friedmann – “O Mundo é Plano” – constatariam que já àquela época a terceirização se fazia em todos os campos:
– Exames de imagem e de ressonância magnética pedidos por médicos nos EUA realizados na Índia;
– Contabilidade empresarial;
– Declarações de imposto de renda;
– Trabalho de toda a natureza realizados virtualmente;
– Call centers para o Rio, São Paulo, Nova Iorque, com imitação de sotaque e todo um universo de atividades e de tarefas, de pesquisas e de ações virtualmente realizadas sem se perguntar se são atividades fins ou atividades meio.
Realmente, essa Súmula 331, do TST, não é uma nova jabuticaba: é apenas mais “uma besteira que assola o País”.
Empresas Verticais X Empresas Horizontais
As empresas há muito estão deixando de ser verticais, estão se tornando cada vez mais horizontais, em especial pelas facilidades das tecnologias de informação e da terceirização. Elas montam produtos e serviços. A academia está normalmente ausente desta questão porque fundamentalmente se assenta no ensino de organizações verticais. Mas o mundo se torna cada vez mais horizontal.
Como proibir por Súmula do TST a contratação de serviços terceirizados relativos às atividades fins de uma organização? Isto é um absoluto anacronismo de gestão, inadequado ao quadro de circunstâncias da vida moderna, da sociedade globalizada e da economia mundializada. É uma extravagância juridicista, legalista, da Justiça do Trabalho, que quer legislar em substituição ao Congresso Nacional. No mínimo esse anacronismo deve ser efetivado por lei do Congresso, jamais por súmula da Justiça do Trabalho.
É preciso garantir a plenitude de contratação de serviços terceirizados, meios ou fins, mas garantir também, e em plenitude, as regras efetivas de proteção ao trabalho terceirizado. O empregado terceirizado não pode continuar a ser um pária nas relações de trabalho, um marginal à CLT.
A edição da CLT em 1943 não previa as circunstâncias do trabalho terceirizado em nosso país nos termos em que hoje ele se coloca. Muito menos as cadeias globais de valor ou as redes mundializadas de produção.
O PL 4330/2004 joga na lata do lixo da história essa inusitada Súmula 331 do TST. Estabelece a responsabilidade conjunta da empresa contratante e da contratada na proteção dos direitos e garantias do trabalhador terceirizado. Podia avançar muito mais. Apenas pelo que agora estabelece deve ser aprovado.O processo histórico é sempre assim: se faz por avanços paulatinos. Desengessa a economia e protege os trabalhadores terceirizados.
À Guisa de Conclusão
- Na terceirização, o mais importante e prioritário, o foco principal deve ser garantir as proteções dos trabalhadores terceirizados à semelhança dos trabalhadores de carreira da contratante.
- O Brasil insiste no equívoco do contrato individual de trabalho. No mundo inteiro o que se tem é o contrato coletivo de trabalho. O mesmo se dá com o sindicato único, herança do totalitarismo Varguista, enquanto o mundo adota a pluralidade sindical.
E, é claro, não há como se esquivar do velho imposto sindical, hoje chamado eufemisticamente de contribuição sindical, dispositivo engenhoso de manipulação e de controle do Estado sobre as liberdades sindicais.
- Não há como não se apregoar uma legislação trabalhista geral, que garanta os direitos dos trabalhadores, associado às convenções coletivas, que produzem normas e regras específicas caso a caso. As negociações devem estabelecer os acordos de gestão de pessoas.
E assim, se deve avançar, e muito, no seguro-emprego, desenfaixando o seguro-desemprego.
- O contrato individual de trabalho fragiliza enormemente o empregado diante do poder incomensurável do empregador. É evidente que a aprovação do PL 4330 vai contribuir decisivamente para proteger os trabalhadores terceirizados.
- Uma questão a resolver será decidir quais sindicatos os trabalhadores terceirizados devem pertencer? Da contratante ou da contratada? Aos sindicatos próprios ou ao majoritário?
- Essencialmente, é preciso garantir à contratante terceirizar e quarteirizar quaisquer de suas atividades, meios ou fins. O Brasil precisa se libertar desse passadismo anacrônico.
- A afirmativa de que o PL 4330 precariza o trabalho porque obstaculiza a contratação de empregados de carreira pelo sistema do mérito, chega a ser hilariante. O que é precarizante é manter o quadro de circunstâncias da atual realidade brasileira que deixa à margem das garantias protetivas do trabalho milhões e milhões de trabalhadores. E esses números só tendem a crescer.
- O PL 4330 amplia e estende direitos aos terceirizados. São criadas novas condições objetivas e reguladas para a economia crescer e se desenvolver, fomentar novos postos formais de trabalho. Contemporiza o Brasil com o presente do mundo desenvolvido, impede a atual exploração do trabalhador terceirizado.
- Organizações Verticais: tempo passado. A área de recursos humanos das organizações, os sindicatos e os processos gerenciais das organizações em geral foram concebidos para operar organizações verticais como a única forma de relação de trabalho. O desafio que se coloca agora nos tempos presentes é como horizontalizar as organizações, permitindo dar vazão para que a economia em geral também se horizontalize.
- O PL 4330/2004 aumenta o custo da terceirização. A aprovação do PL deve atenuar, paradoxalmente, os próprios usos de terceirização a curto e médio prazos porque aumenta os custos da operação. Obrigações trabalhistas e previdenciárias estendidas aos terceirizados devem desestimular as suas contratações, optando-se, em muitos casos, pela contratação da mão de obra direta. Enfim, o fim da exploração dos trabalhadores ensejará maior contratação e concursos em função dos custos mais elevados dos terceirizados. Esta é uma expectativa que fatalmente se confirmará.
Adm Wagner Siqueira
CRA-RJ 01-2903
Presidente do CRA-RJ período de 2011-2016
Nota: este texto é a transcrição literal da exposição apresentada ao Plenário do CFA, sem quaisquer correções, atualizações ou ajustes.
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