No jornal O Globo desta semana, o jornalista Ascânio Seleme faz uma sensata análise sobre a questão dos suicídios entre os jovens, brasileiros e em todo o mundo, utilizando números atuais e preocupantes da situação. Além disso, cita exemplos de influências negativas, como o caso do jogo ‘baleia azul’ e as inadequações sociais e físicas que são explanadas diariamente nas redes sociais, tornando-se um momento inconteste da necessidade de cada vez mais discussões sobre o assunto, seja em casa, nas instituições de ensino e no trabalho. Sim, no trabalho, já que os jovens que hoje sofrem essas pressões logo logo estarão no mercado de trabalho sofrendo outros tipos de abusos psicológicos, mas que também levam ao suicídio e pouco ou quase nada é falado a respeito.
Ao ler tal artigo, lembrei-me que durante a Guerra do Vietnã, os bonzos, sacerdotes budistas, ateavam fogo às vestes em imolação pública de protesto contra a presença americana no território vietnamita.
Anos após, Robert McNamara, à época Ministro da Defesa dos EUA, diria: “A coragem impassível daqueles bonzos em chamas foi uma das mais poderosas armas utilizadas contra nós no Vietnã”. E, recentemente, o mundo assistiu atônito à eclosão da Primavera Árabe, que se iniciou no norte da Tunísia com um jovem que ateou fogo às próprias vestes como ato de protesto contra o regime totalitário prevalecente nos países islâmicos.
Por tudo isso e ao artigo acima citado, não resisto à comparação desses eventos históricos trágicos com a onda de suicídios, estresse desmesurado, síndromes de pânico, inusitadas doenças psicológicas profissionais que convivemos hoje no mundo das organizações e, é claro, também aqui no Brasil, se bem que de forma ainda mais dissimulada, como se esse drama não nos atingisse igualmente.
Bem, compreendo, alguns dirão: “Mas que absurdo — as circunstâncias de uma guerra boçal não se comparam à realidade vivida hoje no mundo das organizações empresariais. Muito menos as razões que sublevam os jovens militantes islâmicos contra situações políticas ditatoriais em tantos países do mundo árabe”.
Os contextos são obviamente distintos. As devastações de uma guerra econômica, como a que vivemos hoje na sociedade de mercado globalizada, irrestritamente protagonizadas pelas organizações, não são de mesma natureza que as de um conflito armado bélico ou de uma revolução política.
No entanto, muitas das constatações das razões de pessoas que dão cabo às suas vidas por causa do trabalho certamente expressam o desejo de denúncia da realidade vigente no interior das organizações. É um ato indubitável de denúncia! Um brado derradeiro em busca da tomada de consciência contra as iniquidades crescentes praticadas no mundo do trabalho. Em verdade, um ato final de libertação da neurose alucinante do trabalho moderno.
As novas práticas de Administração, que deveriam reconciliar o homem ao ambiente de trabalhão, conduzem-no à luta sem quartel em busca de espaço, em que cada qual objetiva alcançar mais e melhores vantagens, e, em vez da integração, cooperação e boa interação pessoa-trabalho, levam-no à desilusão, ao desencanto e à desesperança.
As práticas de Administração voltam a fazer da pessoa, trabalhador assalariado, apenas mais um recurso descartável a serviço da rentabilidade empresarial.
Por quais razões o mal-estar laboral é tão profundo ao passo que, historicamente, as condições objetivas de trabalho nas organizações têm se aprimorando tanto? É indiscutível a melhoria das proteções concretas do trabalho assalariado ao longo do tempo, do trabalho do menor, da mulher, do idoso, dos portadores de deficiência. A jornada de trabalho é reduzida substancialmente, as condições físicas do exercício laboral são bem menos sacrificantes. Dispõe-se hoje de todo um aparato cientifico-tecnológico a minimizar as antigas agruras do trabalhador manual dos tempos passados.
Mas se as condições objetivas do trabalho são hoje bem mais confortáveis, as condições psicossociais, subjetivas, com certeza se degradam exponencialmente, na contramão do discurso oficialista das organizações de laudação de seus “colaboradores”.
Esse fenômeno atinge todos os tipos organizacionais, indistintamente — o setor público e o privado, as empresas submetidas à competição de mercado e as monopolísticas, as grandes, pequenas e médias empresas, atinge como um todo a sociedade globalizada e a uma economia mundializada.
É preciso, o quanto antes, compreender e erradicar as causas de tantos suicídios e sequelas profissionais no mundo do trabalho. Fazer adequadas necropsias e autópsias psicológicas dos suicidas e dos sequelados pelo trabalho.
A tomada de consciência de uma questão tão grave para a humanidade contemporânea parece difícil de emergir. Mais ainda: para os dirigentes públicos, sindicais e empresariais esta é ainda uma questão meramente secundária, restrita apenas à dimensão acadêmica por ser inexpressiva no conjunto real da vida organizacional. Alegam que os problemas que de fato os afligem são o emprego e o desemprego. Questões distintas, é verdade, mais igualmente relevantes.
Como analisar as mudanças que ocorrem no mundo do trabalho? Como compreender e superar as violências, inquietações e sofrimentos que as mutações suscitam? Por que razões os sintomas do mal-estar no trabalho, como o estresse, suicídio, depressões, fadigas, esgotamento profissional, ‘burn out’ e síndromes se encontram cotidianamente em campos de atividades empresariais tão distintos? Quais são as causas mais profundas e sentidas do mal-estar no trabalho da vida moderna? Por que a insatisfação crescente dos assalariados não se expressa forte, solidária e coletivamente nas distintas manifestações dos movimentos sociais em geral, e, em particular dos sindicatos e associações profissionais?
As respostas dessas questões estão longe de serem produzidas pelos seus mais diferentes atores. Quando muito, o que se obtém são avaliações parciais e limitadas, às vezes até cínicas e hipócritas, dissimuladas. É preciso ir fundo às raízes das suas causas, no sentido de erradicá-las.
Os atos de denúncia desesperada dos monges budistas contribuíram decisivamente para o fim da Guerra do Vietnã. O fogo às vestes dos jovens islâmicos desencapsulou a Primavera Árabe.
Por que a denúncia dos suicídios generalizados e das perversões psicológicas tão graves nos assalariados em todo o mundo das organizações não desencadeia uma atitude efetivamente proativa dos dirigentes empresariais, das associações profissionais e sindicais e dos políticos comprometidos com o bem comum? O silêncio de todos é cúmplice! Só contribui para o agravamento de uma nova epidemia profissional — a neurose do trabalho moderno!
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