Wagner Siqueira*

O que efetivamente demonstram as tragédias dos suicídios e os sofrimentos psicológicos que estigmatizam o funcionamento das grandes corporações empresariais em todo o mundo?

As respostas, comentários e observações de seus dirigentes oscilam entre o cinismo e a compaixão, o apelo urgente e dramático aos médicos do trabalho, aos psicólogos e aos psiquiatras, ou as declarações arrogantes de negação da realidade ou de ignorância das circunstâncias em que o cotidiano trágico se efetiva no mundo das relações de trabalho.

Mais do que tudo, os dirigentes demonstram desconhecer inteiramente as descobertas produzidas a partir das Pesquisas de Hawthorne, realizadas entre os anos 1920/1930, sobre motivação e produtividade, em verdade sobre os avanços do conhecimento científico do comportamento humano no trabalho. Mais do que tudo, demonstram profunda ignorância ou negam enfaticamente a importância das interações sociais na realidade do trabalho, descobertas cientificamente comprovadas desde então.

Talvez fosse conveniente sugerir aos que hoje detêm o poder e a responsabilidade diretiva no mundo das organizações que se interessem efetivamente sobre o tema, começando pela leitura atenta de um livro essencial cujo título original em inglês é “Management and the Worker”, cujos autores são F.J. Roethlisberger e W.J.Dickson; o primeiro era professor de sociologia da Universidade de Harvard e o segundo era diretor de pesquisa da própria Western Electric. Esse livro foi publicado originalmente em 1939, nos Estados Unidos.

Talvez, caro leitor, você me indague por que se deter na leitura de um texto tão antigo, concebido e redigido num tempo bem distante do mundo tecnológico em que vivemos? Aparentemente a sua indagação deveria levar tal obra para a lata do lixo da sociedade do conhecimento. Ledo engano!

O livro trata de uma pesquisa – realizada na fábrica Hawthorne, da Western Electric – que se transformou numa inacreditável senda científica, cujas descobertas e avanços nas ciências do comportamento humano no mundo do trabalho são tão pertinentes hoje quanto foram à época da referida publicação do livro.

É fantástico: a natureza humana é permanente e universal, não importam o tempo e o espaço, o momento e o lugar. O que mudam são as circunstâncias em que essa natureza humana se transfigura diante da realidade concreta vivenciada.

A investigação científica inicial de Hawthorne tratava da velha e renovada questão da busca por maior produtividade e lucro. Nada diferente do que ora condiciona a ação gerencial dos tempos presentes. Mas, à época, para aumentar tanto uma quanto outra, sem adicionar ainda maior fadiga e tédio ao trabalho laboral, se resolveu conhecer melhor as condições objetivas em que se dava o desempenho do trabalhador fabril.

Foi em 1927 que se fez pela primeira vez o encontro entre a organização industrial e a organização acadêmica na busca científica por resultados de desempenho empresarial. Esse estudo científico sui-generis não se interrompe nem mesmo sob a influência da grande crise econômica produzida pela queda da Bolsa de Nova York, em 1929.

Simplificadamente, distingamos três etapas distintas da pesquisa.

A primeira se sustenta sobre a investigação de um grupo de operários com vistas a se compreender as relações existentes entre a fadiga do trabalhador e as variações de ritmo e de interrupções das jornadas laborais; de intervalos de jornadas de trabalho; de escalas e de rodízio de horários; de duração diária e semanal das jornadas. Três anos após o início da pesquisa: absoluta perplexidade!

As hipóteses iniciais de investigação nada tinham a ver com as conclusões. Por exemplo: por que em situações sucessivas de trabalhos idênticos o desempenho individual não parava de aumentar? Perplexidade ainda maior: por que estudos prévios que se sustentavam sobre os efeitos das condições físicas de ambiente sobre a fadiga dos operários tinham constatado que a produtividade aumentava independentemente da variação da intensidade da iluminação?

Por duas vezes estava cientificamente comprovado que a interpretação mecanicista da ação humana era factualmente desmentida. Mais surpreendente ainda: era justamente sob uma visão mecanicista que se sustentavam, até então, tanto a representação quanto a organização do trabalho, ambas decorrentes dos princípios da Administração Científica.

Os pesquisadores não tinham como deixar de reconhecer que efetivamente ignoravam a realidade objetiva do trabalho empresarial. Era necessário conhecê-lo!

A segunda etapa da Pesquisa de Hawthorne evolui, então, por uma base de investigação aparentemente contrária ao bom senso e aos primados da Administração Científica em que se afirmava o senso comum à época.

Para enveredar por uma realidade desconhecida, foram concebidas e operadas enquetes de campo por meio da aplicação de questionários.

Estes foram logo abandonados por se mostrarem inefetivos. Afinal, a construção dos itens de questionários investigativos pressupunha o conhecimento prévio de uma realidade que exatamente se constatara ser ainda desconhecida.

Optou-se pela realização de entrevistas livres com mais de 20.000 entrevistados, com observações diretas, e longas e profundas análises in loco nos ambientes de trabalho.

Uma vez mais as descobertas são surpreendentes para os pesquisadores.  Os pesquisadores defrontam-se com uma dupla abertura teórica de investigação: tanto os estudos psíquicos da psicopatologia de Freud quanto os conhecimentos de etnologia, ou seja, o estudo científico das relações em sociedade sob o ponto de vista da linguagem, dos costumes, das políticas, da religião, da economia e da história são inusitadamente agregados à análise da realidade empresarial em investigação.

Inicia-se, assim, a terceira e mais decisiva etapa da Pesquisa de Hawthorne, que a partir daí vai se sustentar na análise de uma realidade empresarial ainda inexplorada. Isso vai permitir aos pesquisadores compreender a importância da presença e da influência das organizações ditas espontâneas ou informais, também conhecidos como grupos organizacionais primários.

Constata-se, inequivocamente, que esses grupos não são apenas onipresentes na vida empresarial, mais ainda que cada um deles se organiza por uma hierarquia social, por mecanismos próprios de controle e de autoridade, e por formas e maneiras de solidariedade e de apoio mútuo à revelia da estrutura formal da organização.

É o sentimento de pertencimento de cada qual aos grupos informais que fixam o sentido que os seus componentes atribuem ao seu trabalho e à sua própria situação de trabalho.

A empresa desde então não pode mais ser considerada como apenas um mero agregado de pessoas envolvidas na realização de um propósito comum. Concomitantemente à organização formal, oficial, ela contém e se vivifica por uma organização informal, invisível, não aparentemente percebida, mais decisiva e de marcante influência. Nascem a sociologia Industrial e a Psicologia do Trabalho!

Desde os primórdios da Pesquisa de Hawtorne, por décadas, muitas pesquisas e contribuições foram incorporadas ao melhor conhecimento da realidade das organizações. De repente, como se num passe de mágica, mergulha-se num obscurantismo anterior às descobertas pioneiras de Hawthorne: ocorre o abandono, a negação e a ignorância pelo mundo empresarial das descobertas lentamente acumuladas pelas ciências do comportamento humano aplicadas ao trabalho. Mormente a partir dos anos 1990, com a adoção irrestrita na vida empresarial cotidiana do ideário neoliberal Reagan/Thatcher postulado para a sociedade de mercado.

Em nome da valorização da concorrência e da competição e em busca da maximização dos lucros, as gerências se dedicam agora a construir organizações fundadas na individualização de metas e de objetivos, e na personalização de meios e de responsabilidades, de pressões e de avaliações, de prêmios e de punições.

O novo imperativo categórico agora predominante no mundo do trabalho é a dedicação incondicional à organização, com todas as repercussões inafastáveis que tal devoção acarreta à sobrecarga crescente de trabalho, ao afastamento progressivo do convívio familiar e à submissão incontrastável às exigências de mobilidade espacial e de disponibilidade temporal.

As consequências desta nova realidade organizacional não são difíceis de constatar: o que antes se chamava de relações humanas estáveis hoje já não existem mais, substituídas agora pela indiferença generalizada e pelo descaso de um com o outro. Cada um por si na luta contra todos impulsiona o capital competitivo, o prestígio e a construção de imagem que vão permitir e pavimentar a escalada do sucesso pessoal.

É a primeira vez, em escala tão poderosa, que o mercado competitivo se transforma numa forma de organização do trabalho. A sua extensão e intensificação massiva contribuem para a atomização social. Fragilizam-se os laços de solidariedade e de apoio. Fortalecem-se as ameaças de demissão, o medo do desemprego e a submissão coletiva.

As estruturas sociais informais são varridas pelo regime da competição individual generalizada.

A propalada colaboração e a solidariedade do trabalho em equipe passam a ser, no máximo, meros factóides intelectualistas a serem reverberados em eventos “politicamente corretos” sob os auspícios das organizações promotoras. Apenas peças de discursos que nada têm a ver com a realidade concreta do mundo do trabalho.

Os argumentos econômicos, no entanto, estão longe de explicar o predomínio comportamental dessas novas gerências neoliberais das organizações modernas.

Toda forma de organização é, em si mesma, uma técnica instrumental de dominação social. Ela é funcional, não é substantiva.

Convivemos agora com a destruição sistemática das estruturas sociais espontâneas, ou seja, das organizações informais ou dos grupos primários existentes dentro das organizações formais, quer sejam elas interna quer sejam externas, como a família e as diferentes formas comunitárias de associação.

É evidente que a violência social não é inusitada na vida das organizações. Ela sempre pontificou na realidade organizacional desde os primórdios do capitalismo primitivo. O inusitado é a forma em que a violência social se transveste agora na vida empresarial neste primeiro quartel de milênio.

A dramaticidade da violência dos tempos atuais será mais bem compreendida se voltarmos os olhos ao passado em busca dos resultados fundamentais da Pesquisa de Hawthorne.

Os pesquisadores não se contentaram em evidenciar uma realidade até então ignorada pelo mundo das organizações. Tentaram também interpretá-la, valendo-se sobretudo da teoria sociológica de Émile Durkheim, que se fundamentava num corpo de concepções sobre as relações existentes entre as estruturas sociais, a integração social e o que ele chamava de anomia. Concluíram: a estrutura social integra a pessoa à normalidade assim como a sua inexistência a faz mergulhar no caos de regras, de práticas e de processos contraditórios. Em verdade, os pesquisadores da Western Electric nos mostraram exatamente o que hoje novamente se constata: a ausência do fato coletivo ou do grupo social conduz o individuo à infelicidade, à tristeza, à desgraça e à loucura.

Que sejam tratadas simultaneamente as almas e os corpos, ou seja, tanto a organização informal quanto a formal.

É preciso parar de buscar as causas do atual sofrimento predominante nas grandes corporações lá onde elas não estão por absoluto desconhecimento donde elas efetivamente estão: no ambiente social.

Chega de considerar como normal, habitual, até mesmo necessário como um imperativo categórico da sociedade de mercado, a desconstrução das estruturas sociais que regem a existência humana no mundo do trabalho.

“O homem é um animal social!”. Esta realidade cientificamente comprovada pelas investigações de Hawthorne, considerada por elas como uma quase lei social, não pode continuar a ser ignorada por aqueles que detêm o poder gerencial nas organizações neste primeiro quartel de milênio.

(*) Wagner Siqueira é o Conselheiro Federal do CRA/RJ junto ao CFA e diretor geral da UCAdm – universidade corporativa do administrador. É autor dos livros “Estratégias de Intervenção em Consultoria de Organização, pela AMAZON, em 2021 e “As Organizações São Morais?”, pela QualityMark, em 2016.

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