Vivemos o apogeu do empreendedorismo, exaltam todos! O colaborador se transformou numa espécie de empregador de si mesmo. Ele é o novo empreendedor, mesmo quando claramente mantém vínculos empregatícios, subordinação definida, jornada de trabalho com horários estabelecidos e, mais do que tudo, dependência econômica.

 

A sua opção existencial não é pela ascensão do risco da atividade empresarial. Mas o contexto do empreendedorismo corporativo o impulsiona ao desempenho dos mesmos papéis e funções, vivendo em plenitude as circunstâncias de um empresário propriamente dito.

 

Pior ainda: não briga pelo seu negócio, mas pelo negócio dos outros. Mas atua como se fosse o seu próprio empreendimento.

 

Quando fracassa, o empresário costuma ir à falência como pessoa jurídica, mas nem sempre como pessoa física. Às vezes, fica até mais rico.

 

Já o empreendedor-empregado inevitavelmente passa a integrar a lista dos desempregados de um headhunter, numa busca ansiosa por recolocação pelo menos próxima ou similar a que detinha antes. O que nem sempre acontece. O mais das vezes, tem de engolir um decesso profissional, com as repercussões evidentes em sua vida.

 

Os dramas existenciais – que vão de depressões, frustrações e crises, até suicídios, como a imprensa internacional tem veiculado em números alarmantes, por exemplo, nas macro-corporações francesas – são certamente as consequências das novas formas de organização do trabalho praticadas nestes primeiros anos do Século XXI.

 

As relações de trabalho já não mais se orientam pela antiga lógica que impelia os sindicatos à luta pela redução da jornada de trabalho, pelo aumento de salários e dos ganhos de produtividade e, somente subsidiariamente, pela melhoria das condições de trabalho.

 

Foram essas as condições predominantes que ensejaram o desenvolvimento da economia de mercado, o crescimento econômico-social e a sociedade de consumo.

 

Antes, a realização humana não se restringia ao trabalho em si, mas se expandia preponderantemente na família e nas distintas formas de relações comunitárias (clubes, associações, sindicatos, igrejas, vizinhanças, moradores, parentes), tudo assegurado e propiciado pelo acesso financeiro regular a que os assalariados dispunham através de vínculos empregatícios estáveis, quase permanentes.

 

As novas formas de organização do trabalho são agora inteiramente diferentes, nada têm mais a ver com esse passado ainda recente.

 

Não são os problemas pessoais não tratados dos empregados que os levam a atos de desespero e à depressão nos ambientes de trabalho.

 

Esses atos são a resposta dilacerante de empregados, ditos colaboradores e empreendedores, que sucumbem no cotidiano de uma realidade de trabalho que lhes é totalmente adversa. São as consequências da organização e da implementação de processos de trabalho que violam a natureza humana. São a expressão de revolta e de impotência ante uma situação inflexível e intransponível, em que não se vislumbram condições objetivas de escapar ou de, pelo menos, atenuar.

 

Aquele colaborador que se suicida nos convoca para ver o que é visível, mas não é visto no mundo das organizações. Estamos crescentemente produzindo sobreviventes, mortos-vivos ou zumbis no cotidiano de nossas organizações, e nem nos damos conta disso. É claro, os reiterados casos de suicídio nos escandalizam!

 

Nunca se exaltou tanto “o trabalho em equipe”, “o vestir a camisa”, “o ter o espírito de grupo”, mas as avaliações individualizadas de desempenho e de cumprimento de metas e de resultados produzem o dilaceramento psicológico e moral do empregado-empreendedor como pessoa.

 

O empregado transforma-se na prática no empregador de si mesmo. Os trabalhadores já não têm razões para se contraporem ao capital. Se o assalariado é transformado em seu próprio empregador, não há o que falar em luta de classes, na contradição entre salário e lucro, em mais valia, ou nos interesses antagônicos dos patrões e dos empregados.

 

A luta de classe se transfere para o interior do indivíduo, invade a individualidade do colaborador, absorve a sua psiquê. Dilacera o indivíduo como pessoa.

 

É claro, o capital e o trabalho continuam plenamente presentes, mas o conflito entre ambos se transfere artificialmente para o interior do indivíduo.

 

Antes o conflito social era regulado pelas negociações e acordos coletivos produzidos entre as representações patronais e os sindicatos dos trabalhadores, pelo respeito à legislação trabalhista e previdenciária, e pela intermediação direta do Estado através da Justiça do trabalho.

 

Hoje a responsabilidade pela administração desse conflito irreconciliável se dá dentro de cada indivíduo, empregado e simultaneamente empreendedor, colaborador e subordinado, cada vez mais submetido às cobranças de desempenho e à execução de metas e de resultados.

 

O suicídio é o ato derradeiro de libertação de muitos que, ao fracassarem, não suportam mais a submissão às estratégias sutis de exploração humana praticadas hoje no mundo do trabalho sob a fachada soi-disant do empreendedorismo corporativo, a nova resposta capitalista ao problema da luta de classes, o dernier-cri da ideologia instrumental a serviço da aristocracia financeira detentora massiva do capital majoritário das organizações.

 

Quem é Wagner Siqueira?

Consultor de organização, Wagner Siqueira foi Presidente do Conselho Federal de Administração e do Conselho Regional de Administração do Rio de Janeiro. Foi Secretário de Administração da Prefeitura do Rio de Janeiro, Presidente do Riocentro e Secretário de Desenvolvimento Social da Prefeitura do Rio, além de exercer muitos outros cargos na Administração pública e privada.

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