A privatização da sociedade civil, umbilicalmente vinculada à profissionalização das grandes ONGs internacionais, traz em seu bojo o florescimento de um novo risco à democracia nos tempos modernos, ou seja, o ovo da serpente do totalitarismo: o espírito crítico da sociedade se circunscreve à hegemonia de um pensamento único, percebido equivocadamente como a quintessência do consenso na sociedade em que vivemos.
Há um paradoxo intrínseco nesse enorme equívoco, que precisa ser devidamente desvendado. Ele se particulariza numa interação cada vez mais promíscua entre as próprias ONGs, os governos e as macro-organizações globalizadas. Vejamo-lo explicitamente nos itens a, b, c, abaixo descritos:
a) As grandes ONGs internacionais mobilizam uma enorme gama de recursos humanos, financeiros e institucionais que efetivamente contribuem para fazer existir a globalização como um enredo político de forças controversas; mas, igualmente; se constitui num generoso espaço de exposição em torno do qual os técnicos e especialistas se dedicam com afinco. Quando participam de diferentes fóruns internacionais esses experts têm todo o interesse de não destruir esse novo espaço de exposição dos quais são importantes e badalados protagonistas, vale dizer, passam a dispor de poder e de influência, de reconhecimento e de prestígio na cena mundial. Aparecem como os porta-vozes da sociedade civil organizada.
b) Concomitantemente, forja-se uma capilaridade crescente e permanente entre a sociedade civil e o aparelho de Estado: os melhores especialistas de defesa dos direitos dos cidadãos, por exemplo, que combatem ferozmente as empresas privadas por suas práticas indevidas de desrespeito à cidadania, podem alguns anos mais tarde, sem o menor constrangimento, colocar-se a serviço das mesmas empresas que antes combatiam com tanto denodo.
Esta circunstância objetiva alimenta as razões de justificativas, os networks e os lobbies, e está na origem e no limite do poderoso desenvolvimento e da espetacularização dos formadores de opinião pública no mundo empresarial, sustentados por organizações partícipes líderes da sociedade de mercado.
c) Para legitimar o desejo de universalização e de homogeneização de pensamento e ação, tanto as organizações empresariais quanto as ONGs, os governos e as grandes fundações globais recrutam quadros entre os melhores cérebros universitários e os intelectuais também dos países emergentes e do terceiro mundo.
O paradoxo é que a enormidade de meios e de recursos utilizados para questionar os efeitos nocivos da globalização contribua para plasmar a universalização e a hegemonia do pensamento único no mundo organizacional.
Os mesmos que trabalham hoje no núcleo central do aparelho do Estado e nas funções periféricas de governo podem ser encontrados amanhã também trabalhando nas grandes fundações internacionais, as quais, aliás, fomentam e financiam os movimentos sociais e propugnam pela responsabilidade social das organizações, pela ética empresarial, pelas empresas cidadãs e pelo desenvolvimento sustentável. São os mesmos que exercem papéis e funções paradoxais, porque contraditórios e incompatíveis, em diferentes situações organizacionais. Ora nos governos, ora nas ONGs e ora nas fundações.
Assim, a ideologia que irriga e fecunda os formadores de opinião no universo das relações empresariais e na sociedade civil se desenvolve de forma sutil e clandestina no mundo acadêmico e nas práticas organizacionais, na formulação de teorias de gestão e na sua implementação.
Esta interação paradoxal contribui efetivamente para a uniformização ou a estandardização das oportunidades no campo mundial de formação dos dirigentes públicos, dos quadros gerenciais privados, e dos líderes das organizações constitutivas da sociedade civil em suas diferentes nuances.
O discurso edulcorado dessas elites oriundas de tal interação promíscua exala um perfume de modernidade e de espontaneidade capaz de seduzir parcelas substantivas da opinião pública. E assim propaga-se o equivoco de que o sistema cede e se humaniza. Ledo engano!
Temo que esteja em marcha sorrateira a universalização de um pensamento único apenas capaz de promover respostas puramente cosméticas aos dramas do desenvolvimento sustentável e da preservação ambiental.
Sob o influxo da ação de numerosas ONGs em todo o mundo, cada vez mais contidas e cooptadas, normalmente financiadas por grandes instituições fundacionais globais, como, por exemplo, as fundações Soros, Rockefeller, Ford ou Gates, que são os braços operacionais de proteção social ou de benemerência da sociedade de mercado, a sociedade civil perde voz e vez, arrefece a sua capacidade de luta e obscurece a consciência de sua verdadeira realidade. A sociedade civil se torna, assim, simplesmente instrumental ou funcional para o domínio e o controle dos grandes acionistas majoritários da economia globalizada.
Freqüentemente são os mesmos participantes das ONGs que denunciam, sob grande repercussão na imprensa, as violações aos direitos humanos ou os crimes ambientais e que, paralelamente, como protagonistas do debate mundial participam bem mais contidos e circunspectos dos fóruns internacionais, legitimando a construção de uma versão mais condescendente do liberalismo da sociedade de mercado. Ora, é justamente a economia de mercado a fonte e a origem, a razão de ser dos excessos praticados pelas organizações empresariais em todo o mundo.
Os laboratórios intelectuais e as pesquisas acadêmicas da sociedade do conhecimento a serviço do mercado buscam moldar a globalização de uma feição mais humanizada. Em verdade, com os resultados que obtêm, legitimando os processos e as práticas existentes, terminam por se constituir em cortinas de fumaça e álibis que contribuem para deslegitimar as reais críticas e os questionamentos ao mercado como o inimputável condottieri da vida humana moderna. Cada vez mais privam o homem de sua forma humana, reduzindo-o a uma mera dimensão de variável econômica.
Ao fim e ao cabo os formadores de opinião, queridinhos da mídia na sociedade do espetáculo, tendem a pasteurizar as idéias progressistas de transformação da realidade, contribuindo com suas ações e omissões para a manutenção do establishment e do status quo.
Passam a idéia e fazem crer que o capitalismo possua a capacidade de se auto-reformar suavemente, sob base voluntária e consensual. E mais ainda: em perfeita harmonia, sob consenso pactual, com os consumidores e o desenvolvimento sustentável, os conselheiros da ética empresarial, que normalmente se apresentam como consultores, mentores ou professores de administração, os ativistas dos movimentos sociais globalizados, os políticos tradicionais e os governos. No mais das vezes, querem incorporar a tal consenso pactual as próprias vítimas das ilicitudes empresariais, sempre através de modestas indenizações financeiras ou das chantagens de ameaça das perdas de emprego pela relocalização das plantas industriais.
Tudo isso, obviamente, contribui para a contenção e o abaixamento do tom dos protestos nas ruas e a praticidade objetiva das denúncias e das ações judiciais contra as ilicitudes produzidas pela ação empresarial danosa. Pior ainda: amiúde os formadores de opinião são inteiramente cooptados com a cumplicidade do silêncio conveniente.
Essa astúcia estratégica da sociedade de mercado se estende, por certo, à interminável novela da falsa e verdadeira luta contra a corrupção e os circuitos escabrosos dos dinheiros sujos das multinacionais. Mas ai vai outra dimensão da mesma problemática da má contribuição dos formadores de opinião para a homogeneização de um pensamento único, portanto totalitário, na cena mundial imposta ao universo da sociedade e particularmente ao mundo das organizações. Lados opostos da mesma moeda, facetas distintas de uma mesma realidade, uma situação reforça a outra.
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