Eis aí uma ideia ingênua, reiteradamente repetida como um mantra da verdade por analistas de envergadura e disseminada, de forma ampla, nas mídias sociais: agora tudo vai ser diferente na pós-pandemia, “vamos todos mudar”, “o mundo não será mais o mesmo”.
Diante da crise do coronavírus, o abismo econômico-social que separa ricos dos pobres desaparece. A tragédia que a todos atinge desencadeia efeitos milagrosos. Face à tamanha desgraça, todos se irmanam no amor ao próximo e na solidariedade; patrões e empregados se compreendem; a construção de um novo mundo de generosidade passa a ser possível; o ser humano vai ser, enfim, capaz de se humanizar.
Exclamamos, que ideia generosa e edificante, afirmam os profetas da esperança! Porém, essa ideia pode ser falsa, mais “um sonho numa noite de verão”. Pode ser plenamente substituída por seu contrário: no caso dos efeitos da catástrofe, pode ser que os fortes fiquem mais fortes ainda; os ricos mais ricos; e os fracos mais fracos; os miseráveis, então, nem se fala!
O Brasil, campeão mundial em desigualdades, poderá assumir o humilhante posto de protagonista “hors concurs” do desrespeito às populações mais vulneráveis. O nosso mau hábito do “Deus Dará” pode nos levar ainda mais às profundezas das vicissitudes humanas a um número cada vez maior de brasileiros.
Enquanto as pequenas, microempresas e as MEI’s quebram, as grandes corporações empresariais e os bancos provavelmente apresentarão belos resultados de desempenho, mercê dos privilegiados empréstimos e recursos de apoio que lhes estão sendo conferidos pelos órgãos oficiais, exatamente e nada diferente do que ocorreu com a crise de 2008. O povo sofre e aqueles da jogatina dos subprimes “se dão bem”.
Mais do que nunca, é preciso estar atento às circunstâncias que envolvem hoje a realidade brasileira: uma inacreditável crise de lideranças, que se exponencia por ser simultânea e sinergicamente sanitária, econômica e política. Somos uma nau sem rumo! Cada qual puxa para o seu lado, num cabo de guerra ensandecido.
O caos institucional se estabelece. E num país em anomia, ou seja, nessa “Torre de Babel” tupiniquim nunca serão os vulneráveis os beneficiários: os sanguessugas de sempre, os diaristas de convicções, os arrivistas de valores já se apresentam de goelas bem abertas.
Pior: os nossos defeitos e maus hábitos de sempre podem ficar ainda mais ossificados. É verdade, toda crise traz em si uma oportunidade para o novo. Mas temo também que possa agravar ainda mais nossos descaminhos. Tudo vai depender de nossa atitude como uma sociedade politicamente organizada.
Enquanto os três Poderes da República não se entenderem em processos legítimos de negociação democrática ganha/ganha; enquanto as três instâncias governamentais – federal, estadual e municipal – não cumprirem, de forma complementar e subsidiária, os seus papéis e funções definidos constitucionalmente; enquanto a irracionalidade da polarização política nos separar pelo ódio ao outrem, o vencedor será o coronavírus.
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