De Wagner Siqueira*

 

Dia da mulher, data de comemoração, mas, acima de tudo, de luta e de tomada de consciência da situação da mulher no universo da sociedade e no mundo das organizações. A permanecer o ritmo atual, levaremos mais um século para que a sociedade brasileira consiga atingir a paridade de gênero. Neste primeiro quartel do Século XXI, reedita-se a costumeira exaltação, em ambientes acadêmicos e corporativos, na imprensa em geral e nas mídias digitais, de análises, de avaliações e de prognósticos que, ao fim e ao cabo, terminam por pouquíssimos avanços efetivos no combate ao sexismo e à desigualdade de gêneros. E todos os uníssonos falam em prol da mulher e na defesa da paridade! E por que digo isso?

 

Usualmente afirmam que muitas das características e das capacidades tradicionalmente associadas por estereótipos às mulheres e às profissões ditas “essencialmente femininas” serão bem mais necessárias na economia 4.0: prestadores de cuidados de saúde, de idosos, assistentes sociais, psicólogos, terapeutas, treinadores, organizadores de eventos, enfermeiras, pessoal de RH e toda uma infinidade de outras que hoje ainda se confere preponderantemente ao exercício feminino. Enfim, a economia 4.0, no dizer de especialistas masculinos, vai abrir espaço à paridade de gênero, com muita maior oferta de emprego às mulheres. Eis aí reafirma-se o novo discurso dissimulativo e de escamoteação da misoginia. Se quer circunscrever o espaço da mulher na 4ª. RI como se ela fosse destinada apenas a espaços predefinidos e específicos. Reeditam-se a discriminação e o preconceito.

 

Muitos dos que defendem a paridade de gênero não se dão conta que se aburguesaram e, assim, perdem a percepção de que nos ambientes em que vivem a desigualdade em relação à mulher, se bem que ainda flagrantes e absurdas, concretizam-se de forma bem mais matizadas e eufemisticamente atenuadas. Afinal, dispõem de educação formal e boa situação de vida, que não desejam sair de suas condições atuais. Muitos extrapolam a sua realidade para o conjunto da sociedade e, assim, restringem-se à luta pela conquista da igualdade identitária da mulher, abandonando como prioridade as questões coletivas de afirmação de gênero num dos países mais desiguais do mundo. Não focam como prioridade a luta da mulher coletivamente, em todas as suas circunstâncias de discriminação e de exploração. Conferem muito maior importância ao número de mulheres que integram ou não os conselhos de administração corporativos ou que são diretoras de empresas do que à multidão de mulheres trabalhadoras que resistem às distintas formas de assédio de seus supervisores e patrões, sob o jugo da perda do emprego ou de sequer serem admitidas. Comparam mais as diferenças salariais, também absurdas, de remuneração entre mulheres de alta proficiência profissional do que às vicissitudes empregatícias a que se submetem mulheres pobres e de baixa instrução coletivamente para levar seu ganha pão para as famílias, em que, o mais das vezes, são únicas e solitárias no sustento, já que abandonadas por seus maridos.

 

A luta se despolitiza e envereda pelo politicamente correto: o importante passa a ser a mulher, e, mais ainda, quando dispuser de dupla forma de discriminação, mulher negra, ser ou não apresentadora de um grande jornal de tv ou atriz principal de cinema ou de telenovela. Não que essas questões identitárias não sejam substantivamente relevantes, mas os avanços e conquistas coletivas essenciais da mulher na pobreza passam a ser objetivamente tratadas como secundárias, quando muito apenas objeto de discursos de pouca ou quase nenhuma ação prática. E, assim, as vulnerabilidades sociais do conjunto das mulheres brasileiras cada vez mais se agravam, apesar de ganhos identitários relevantes, mas não exclusivos ou predominantes.

 

Avança a polarização política no Brasil, também sob o viés da questão da paridade de gênero: a direita reafirma querer a globalização econômica e as vantagens do neoliberalismo, mas quase nada faz de ações concretas em favor das mulheres na ocupação do espaço paritário produzido pela expansão do desenvolvimento. E a esquerda diz querer a paridade de gênero, mas não quer o capitalismo que, pressupostamente, possa trazer maior espaço de trabalho paritário para quaisquer que sejam as ocupações humanas. Praticamente abandona a luta coletiva e se cinge à luta identitária do politicamente correto. E, assim, os avanços se arrastam lentamente, quando não caminham como caranguejos, para trás.

 

*Wagner Siqueira é consultor de organização e autor de alguns livros, como “As organizações são morais”, “Seitas Organizacionais” e “Estratégias de intervenção em consultoria de organização”.

 

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