*Wagner Siqueira

A moral habita um reino. A economia habita outro reino, bem distinto. As organizações não são morais, mas não precisam ser imorais! Que pelo menos sejam apenas amorais. Já seria um grande avanço, pois assim revelariam a sua própria natureza, sem enganar e mistificar a opinião pública.

Definitivamente, as empresas não são a aristocracia da virtude. O episódio absurdo e escandaloso das Americanas é bem representativo desta constatação. Cadê o conselho de administração das Americanas, seu corpo diretivo e gerencial, a auditoria interna e externa, seus badalados sistemas de transparência e de governança, de responsabilidade social e de empresa cidadã, de ética empresarial, de agenda ESG – o novo mantra salvacionista das empresas ditas dinâmicas e inovadoras? Nada viram, ou simplesmente legitimaram com o silêncio cúmplice os desmandos e os despautérios da má gestão.

Cadê está a CVM, que nunca nada vê nem se antecipa aos problemas porque alega ter poucos funcionários? Está sempre atrás da realidade, em ações reiteradamente post-mortem! Cadê os conselhos federais e regionais de administração, de contabilidade e de economia que se calam diante de mais este escândalo, numa lógica de esperteza que se repete, em que, de fato, se declaram e se caracterizam por um silêncio eloquente: “isto não é comigo”, “nada tenho a declarar”, “nunca me arrependi do que não disse”, “boca fechada não entra mosca”! Cadê o compromisso social e institucional de fiscalização desses conselhos de classe com a administração, a contabilidade e a economia de seus entes supervisionados na sociedade?

Pior ainda são os ditos “especialistas” em RH e em consultoria de organização, sempre muito ávidos em postagens nas mídias sociais como estratégias de marketing pessoal, exaltando as maravilhas dos gestores, eventuais contratantes de seus serviços da pauta ESG e de ética empresarial ou de voluntariado solidário? O que falam do “desempenho disruptivo” das Americanas, aliás resultante de um trio gestor muito badalado, sempre useiro e vezeiro em replicar esses tipos espertos de gestão financeira com “soluções ousadas” na economia real.

É verdade que outros escândalos semelhantes do trio são de circunstâncias de menor repercussão aqui no Brasil, mas não menos absurdas nas organizações que compram e dirigem, fazem e desfazem em todo o mundo, inclusive aqui em empresas educacionais, pretensamente universitárias, pois os seus resultados não são a qualidade de formação de seus alunos, mas os índices de suas ações nas bolsas de valores. Para eles a educação é apenas um detalhe, o cliente um mal necessário.

Tal lógica pervertida, tão elogiada como modelo pelos especialistas e por uma “imprensa amestrada” não é diferente na gestão das Americanas. O Beto Sicupira chega ao desplante de um comportamento caricato de dançar ao som da bateria da Beija Flor, fantasiado de odalisca em plena Praça Mauá, há poucos anos em comemoração pelos resultados espetaculares obtidos das ações das Americanas na bolsa de valores. Bem, seus clientes e acionistas minoritários são também apenas um detalhe. Seus 40 mil empegados também.

Será que um empresário que se comporta como uma Pablo Vittar organizacional é muito diferente do Palhaço Tiririca, o deputado mais votado no parlamento brasileiro? Ambos mistificam a opinião pública: um como o epíteto de um grande gestor empresarial travestido de palhaço a ser imitado e copiado; o outro como um verdadeiro palhaço representante dos anseios do cidadão na formulação de políticas públicas. Estamos muito mal: um país que precisa de heróis desse jaez não merece ser salvo! Muito menos suas empresas o rico dinheirinho do povo.

No Brasil as empresas quebram como pessoas jurídicas, mas os seus acionistas majoritários sempre ficam mais ricos como pessoas físicas. Quem paga a conta inexoravelmente são os acionistas minoritários, os empregados que ficam sem os seus empregos, o Estado brasileiro e, portanto, a população.

Apenas o helicóptero particular do Sr. Beto Sicupira ou os jatinhos de seus sócios no negócio – Paulo Lehman e Marcel Telles – pagariam facilmente o rombo da má gestão das Americanas. Mas suas irresponsabilidades sociais, a falta de ética empresarial e a inconsciência objetiva da agenda ESG, que tanto propalam, mas pouco praticam, jamais os fariam ter uma atitude condizente com o que apregoam e menos ainda a fazer um gesto em direção ao que afirmam ser a doutrina gerencial que sustenta seu exaltado empreendedorismo, tido como virtuoso.

O caso das Americanas não é o primeiro episódio rumoroso desse trio na cena mundial: sempre se vale da economia real para praticar suas espertezas na voracidade de ganhos na economia financeira, para o encantamento e o deslumbramento acrítico da opinião pública, de uma academia alienada, muitas vezes financiada com logotipos nos centros de pesquisas, dos órgãos públicos de controle vocacionados centralmente às minudências burocráticas e de uma imprensa assustadoramente leniente com tais práticas empresariais, por razões nem sempre transparentes.

*Wagner Siqueira presidente do Conselho Regional de Administração do Rio de Janeiro (CRA-RJ) e autor do livro “As organizações São Morais?”, publicado pela Qualitymark Editora, disponível pela Amazon nas versões impressa e digital.