Apesar de instituições tão ruins quanto as brasileiras, reflexos das perversões intrínsecas do presidencialismo, sempre me encanta a cultura democrática americana, capaz de barrar quaisquer arroubos totalitários e manter a trajetória de respeito à Constituição. A posse do presidente Biden é mais uma expressão concreta dessa realidade, simpatizemos ou não com os Estados Unidos.
A lealdade que se deve exigir de um agente público é, antes de tudo, com o país e suas leis, com a constituição. A ética do estado de direito é assim completamente distinta da “ética” de organizações criminosas, sejam elas um bando de delinquentes ou corruptos associados em assaltar os cofres públicos etc. Nestas, o que se exige é o silêncio absoluto da “omertà”, a lealdade irrestrita aos chefes para que se possa manter incólume à prática de crimes. Nenhum estado democrático de direito pode sobreviver sobre o poder da corrupção social, do hábito dos erros e dos malfeitos, do mandonismo e do patrimonialismo dos caciques políticos, da prevalência dos crimes, da mentira e da ocultação da verdade.
O COVID-19 iguala a sociedade, dizem muitos arautos da esperança. Eis aí uma ideia ingênua, reiteradamente repetida por analistas e disseminada nas mídias sociais: “agora tudo vai ser diferente na pós-pandemia”. Diante do coronavírus, o abismo econômico-social que separa os ricos dos pobres vai diminuir. A tragédia desencadeia efeitos miraculosos. Todos estão a aprendendo a se amar e a ser solidários. Patrões e empregados vão se compreender melhor, com maior empatia; a construção de um novo mundo de solidariedade e de generosidade irá florescer. Puxa, que ideia fraterna, afirmam os profetas da esperança. Porém, tal ideia é mais um fake news, inteiramente falsa.
Essa propalada ideia de generosidade e solidariedade recíproca pode ser plenamente substituída por seu contrário: os fortes ficam cada vez mais fortes, os ricos mais ricos ainda; os fracos cada vez mais fracos e os pobres e os miseráveis, então, nem se fala!
O Brasil, campeão mundial em desigualdades, torna-se, pouco a pouco, num protagonista “hors concours” do desrespeito às populações vulneráveis. A nossa cultura do “Deus Dará” leva ainda mais às profundezas das vicissitudes humanas um número maior de brasileiros. Enquanto as pequenas e microempresas e as MEI´s quebram, os pobres não têm o que comer, os bancos e as grandes corporações empresariais apresentam resultados ainda melhores. São os beneficiários da crise. Bem, algumas também quebram, mas são os efeitos colaterais não desejados da “falência que purifica”. Todos se beneficiam dos privilegiados empréstimos e recursos que lhes são oferecidos pelos órgãos financeiros oficiais, exatamente análogo ao ocorrido com a crise de 2008. O povo “sifu” e os endinheirados, que se beneficiavam e eram os causadores da jogatina das subprimes, “se deram muito bem”.
Mais do que nunca, é preciso compreender as circunstâncias que envolvem a realidade brasileira: uma crise que se exponencia por ser, simultânea e sinergicamente, institucional, sanitária, econômica, de gestão pública e eminentemente política e de ausência de lideranças capazes e de sentido do bem comum. Num país em confusão, que caminha em direção ao caos, por não possuir uma cultura democrática, nunca serão os vulneráveis que se beneficiarão. Pior, os nossos maus hábitos e costumes podem ainda se agravar, pois não dispomos de uma tradição histórica que nos salve dos nossos defeitos e perversões.
É verdade, a crise sempre pode ser uma oportunidade para o novo, afirmam sempre esse lugar comum os arautos da esperança. Mas pode ser também uma oportunidade para agravar ainda mais os nossos descaminhos. O que fazer? Eis a questão! Vamos continuar a ser o país de um futuro que nunca chega, porque sempre reedita os mesmos passos: “um pra frente e dois pra trás”?
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