Todo conjunto humano em interação produz uma cultura. A identificação com essa cultura penetra na consciência e no inconsciente de todos que dela participam. Freud, em Totem e Tabu, descreve o totem como uma referência de adoração, que é glorificado e corporificado por um clã — no caso, pelo conjunto de empregados — como uma divindade religiosa. Nas organizações, a empresa se transforma no totem, que submete o indivíduo a diferentes formas de adoração, veneração e aceitação. A empresa passa a ser adorada e venerada praticamente como uma figura divina. Todos os que não se submetem a essa divindade são naturalmente excluídos. Mitifica-se a organização. E esse mito é uma mentira cuja repetição pelo hábito torna-se verdade para aqueles que nela convivem. O comportamento das pessoas depende do que pensam e sentem, daquilo em que acreditam como verdade.
O indivíduo não pode tornar-se humano fora do campo social. Somente o outro pode reconhecê-lo e assegurar seu lugar na simbologia social.
Face à inusitada dispersão de valores a que todos estamos submetidos nestes tempos presentes de globalização, a reflexão de Freud se ajusta como luva ao cultismo organizacional inerente à maioria das organizações neste primeiro quartel de século. Elas se tornam ambientes sociais perfeitamente adequados ao reconhecimento recíproco e à mutualidade da interação de pessoas afins que, antes de tudo, compartilham dos mesmos interesses e necessidades.
A crise de incertezas produzida pela competitividade mundializada, pela globalização da economia, pela sociedade “daqui e agora e só por agora” das comunicações online, pelas mudanças inusitadas e profundas nas relações humanas, sociais, tecnológicas e culturais, pela insegurança e pela violência do viver cotidiano, que associadas promovem a desconstrução das identidades das pessoas, é oportunisticamente capturada pelas organizações para aumentar seus contingentes de adeptos. As organizações passam a ser o espaço de sustentação de identidades de pessoas que, desestruturadas pela perda dos valores tradicionais não mais adequados ao mundo de hoje, encontram entre os seus iguais uma mesma tribo, vale dizer, local de trabalho, a solução para as suas dificuldades de alienação existencial, dentre elas a própria identificação como indivíduo e pessoa humana.
O culto à religiosidade do trabalho é um regulador social que aproxima ou atrai as pessoas para uma organização na qual crenças, valores, regras e procedimentos, costumes, símbolos e ritos são compartilhados e aderidos como se todos vivessem numa igreja à parte de todos os outros que não comungam da mesma ideologia ou adoração, que não cultuam os mesmos deuses, que não cultuam a mesma entidade de veneração.
A maioria das organizações torna-se assim essencialmente paranoica. Ela só garante a sua identidade pela negação das outras. Como não há organização sem pessoas, as organizações como ambientes de trabalho acabam por se constituírem obviamente por pessoas que traduzem no comportamento individual comportamentos também paranoicos, vale dizer, constroem um imaginário individual e coletivo de negação da realidade dos outros. Levam os seus membros a viver em uma espécie de estado hipnótico, em que todos obedecem sem pensar e vivem sem nada questionar.
É claro que tal conjunto de circunstâncias se desenvolve de forma sutil, não declarada, na dissimulação de um totalitarismo pretensamente benevolente. As organizações tendem a ser intervencionistas e pragmáticas. Estabelecem e subtraem padrões de comportamentos, valores, opções éticas, gostos e preferências. Estandardizam uma visão homogênea de mundo.
A identidade do colaborador é desconstruída. Enreda-o a participar da construção de uma fantasia de onipotência e de perenidade da existência da organização, o que o estimula a uma autoidentificação com o processo empresarial. Confunde e seduz o empregado a também julgar-se invencível.
A perversão é significativamente facilitada pela crise econômica e pela reestruturação dos processos industriais produzidas pela Economia 4.0, que destroem um número crescente de postos de trabalho em todo o mundo. Assim, os trabalhadores são facilmente submetidos pelas organizações ao que se chama de cultura da empresa. Muitas vezes, em verdade, a cultura nada mais é do que um estratagema ideológico clandestino utilizado para atrair, seduzir e persuadir o empregado a entregar-se ao trabalho como o propósito preponderante de sua existência.
A crise de identidade não atinge apenas as pessoas, mas também as próprias organizações. Reafirmando: não há organizações sem pessoas. As primeiras só existem em decorrência das segundas, que se agregam e articulam para realização de objetivos comuns. As organizações pretendem através do mecanismo da sublimação psicológica reduzir o valor do ser humano. Pela sublimação, o empregado desvia o seu foco da família e dos demais grupos sociais aos quais normalmente se integra para colocar-se preponderantemente à disposição da organização, a serviço de fins e atividades que passa a considerar elevados, grandiosos e relevantes, em verdade a razão de ser de sua existência.
Quando alguém aceita uma determinada situação que lhe é imposta pelas práticas dominantes na organização a que pertença, é claro que não se pode afirmar que a tenha incorporado à sua prática social. Tal comportamento pode até expressar uma atitude de aceitabilidade, de passividade, de capitulação ou de defesa como forma de sobreviver num ambiente de trabalho hostil. Mas, de qualquer forma, ao se defrontar com tal realidade, a subjetividade do ser humano já está afetada, desbalanceada, não é mais saudável, pois a sua identidade individual já se encontra submetida a um processo de alienação. O quanto as pessoas conseguem manter-se infensas às influências do pensamento único professado pelos cultos praticados pelas organizações é determinado pelas suas características individuais de personalidade. Como resistir e sobreviver a tudo isso é um desafio difícil de vencer.
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