Todos nós que exercemos funções de liderança no mundo das organizações tendemos, inadvertidamente, a julgar-nos fora de série, pessoas diferenciadas capazes de absorver quaisquer entrechoques da ambiguidade e do conflito, superar as adversidades e manter o foco nos resultados que nos levam ao sucesso.

Sentimo-nos efetivamente imunes às fragilidades dos circunstantes e das situações, sempre prontos a surfar com competência nos tsunamis do cotidiano organizacional. E nas suas “marolinhas”.

Eu também sempre me senti assim. E assim sempre me comportei no exercício das mais distintas funções executivas. E mais: sempre me julguei impermeável às circunstâncias que levaram muitos colegas a desistir no meio do caminho, a recolher-se à aposentadoria precoce, a retirar-se de cena no teatro da guerra empresarial, a capitular por incapacidade de readaptação aos tempos de turbulência e de incerteza. Mais ainda: não conseguia compreender como podiam desistir exatamente no enfrentamento da crise, logo ela que fecunda a motivação e estimula a capacidade de luta. E dizia: “eu sempre cresço na adversidade”.

Confesso, mesmo, que mais de uma vez não consegui conter o menosprezo por aqueles que capitulavam, os que desistiam do que eu sempre julguei ser combater o bom combate: vencer as crises, superar as adversidades, fazer calar as contrariedades dos momentos difíceis, ressuscitar organizações, fazer renascer atividades e produzir o novo.

Recentemente, vivenciei uma experiência inusitada: a síndrome de burn out atingiu devastadoramente alguém muito próximo, que por mais de duas décadas compartilhou comigo uma díade, ou seja, uma equipe de dois na direção de algumas organizações. Perplexo, não conseguia acreditar que esse companheiro, executivo modelar, com quem sempre tanto aprendi, pudesse ser mais uma vítima do burn out. Irritado, por não aceitar ser incapaz, e muito menos ser impotente, de fazê-lo compreender e ajudá-lo a sair das circunstâncias que forjavam outra pessoa, como indivíduo, profissional e executivo, absolutamente distinta daquela com quem por tanto tempo compartilhei as delícias de cavalgar nas crises  e de derivar satisfação psicológica na superação dos mais difíceis e intrincados desafios organizacionais que juntos, em dupla,  vivenciávamos. Será que este não seria o “meu eu-oculto”, exatamente aquele que eu nunca consegui me autoperceber?

Bem, pensei, se não posso mudar a situação é preciso aceitá-la com serenidade e resignação. E continuei a vida, pensando dispor da mesma determinação e vontade de sempre. Ledo engano! O mais doloroso e sentido dos desenganos é o autoengano.

De repente, à custa de sofridas experiências, consegui perceber que também estava vitimado pelo esgotamento físico e psicológico, pelo burn out, pela aversão e pelo desprazer de realizar o que sempre fiz com tanto gosto. Eu, logo eu, era a nova vítima!

A síndrome de esgotamento profissional, conhecido como burn out, atinge dolorosamente a todos os que se submetem nas organizações à tirania da urgência, aos contextos de trabalho cada vez mais estressantes.

O burn out se torna crescentemente uma verdadeira epidemia nos mundos das organizações e no seio da sociedade em geral. A síndrome de pânico, tão comum nos centros urbanos tão violentos, é apenas uma de suas variantes globalizadas mais conhecidas.

Nunca se propalou tanto a essencialidade do homem no trabalho, a nova concepção de gestão de pessoas, os empregados como colaboradores, mas, na realidade, as pessoas não estão mais tanto em consideração, o mundo e a natureza do trabalho se transformam e se desumanizam sob a égide da “profissionalização” e da necessidade obsessiva do “cumprimento de metas” e da “redução de despesas”, não mais na “exploração das receitas”.

É o neo-taylorismo organizacional que agora dá todas as cartas. Jornadas de trabalho cada vez mais sobrecarregadas, em que o empobrecimento das funções decorre de definições cada vez mais estreitas de como executá-las. A falta de autorrealização na execução de tarefas, cujos desempenhos são cada vez mais regulados pelos procedimentos e processos de trabalho; o individualismo exacerbado; a ausência de suporte ou de apoio social entre colegas, com a desconstrução deliberada e intencional dos grupos informais como elementos essenciais da vida nas relações de trabalho;  a inexistência de coesão do trabalho em equipe pela exacerbação do individualismo de resultados; o sentimento de injustiça e de equitatividade entre os distintos níveis de remuneração; a falta de recursos  com a imposição insana da redução de custos e, à miúde, até a baixa formação profissional e pessoal de muitos em detrimento da sobrecarga de trabalho para os demais,  são alguns, apenas alguns,  agravantes para o florescimento e a generalização da síndrome de burn out.

Todas as pessoas são susceptíveis de sofrer de esgotamento físico e psicológico. É evidente que algumas com mais facilidades do que outras. Mas são os executivos ou líderes os que geralmente mais se recusam a admitir que eles também têm limites, e que, o mais das vezes, ao resistirem são os que mais aprofundam as sequelas e a gravidade desta nova doença que devasta e transforma os seres humanos modernos. E aí todos sofrem: a família, os amigos, os colegas, igualmente vítimas da contaminação da fadiga psicológica.

As mais propensas ao contágio são as pessoas que fazem do trabalho o elemento determinante de suas identidades. Quando as suas aspirações repetidamente se frustram ou suas autoavaliações não se compatibilizam com a realidade, comumente desencapsulam, repentinamente, atitudes de crítica a tudo e a todos, de pouca paciência e serenidade diante dos problemas ou do contraditório, de baixa aceitação às opiniões contrárias, de convicções arraigadas e opiniáticas. Sentem-se permanentemente enganados pelos outros, mesmo por velhos colegas e amigos, desenvolvendo uma atitude de irritação contra as estruturas hierárquicas, contra conhecidos e as normas da sociedade, contra clientes e concorrentes, contra fornecedores, e, a seguir, contra elas mesmas.

Essas pessoas tendem a ter uma necessidade aguda de afirmação diante de si mesma, uma carência incessante de aprovação, um medo quase pânico de não estar à altura do que gostaria de ser e de fazer, o que lhes empurra a fazer cada vez mais e mais até a exaustão. E de uma incapacidade absoluta de conviver com o fracasso e o insucesso. A disseminação em todo o mundo do suicídio no trabalho é a consequência mais brutal da generalização do burn out no cotidiano da vida empresarial moderna.

As vítimas ficam entediadas com o que fazem, em especial com o que sempre fizeram com tanto gosto. Há o fastio e o desgaste com seus cônjuges, e até com seus amantes, quando e se os tiverem, pois estes não as suportam por muito tempo. Mudam de residência, pois não mais aguentam os vizinhos e livram-se de tudo o que tinham em seus armários e arquivos, agora quinquilharias consideradas velharias desnecessárias. E quando chegam às novas residências não só reclamam das adaptações a fazer e das chatices da mudança como das concessões que têm de conceder aos familiares na arrumação e na decoração, sempre despesas vistas como bobagens e futilidades sem qualquer valor prático.

Buscam novas formas de entretenimento e lazer, que as levam ao fanatismo de uma participação obsessiva, que novamente as estressam e esgotam. Tentam diversos caminhos de fuga: largar tudo, mesmo aquilo de que mais gostam; envolvem-se no solidarismo social ou nas torcidas clubísticas organizadas; abandonam sem razões objetivas, para o espanto de todos, empregos, atividades e funções; mudam de países, regiões, empresas e livram-se de tudo o que passa a lhes importunar, como as velhas casas de veraneio. Pensam em abrir negócios próprios, sonho sempre adiado e frustrado ao longo da vida; envolvem-se em relações promíscuas com pessoas inteiramente distintas das que sempre conviveram; vão para as aulas de dança e de culinária, ou tornam-se os “chatos especialistas” de cursos que se sucedem nos grupos dos adoradores de vinho ou de uísque; tornam-se alcoólatras e passam a se drogar; tornam-se os “tios ou as tias suquitas” na paquera das menininhas ou dos menininhos.

Na verdade, fazem tudo isso e um pouco mais. E, por algum tempo, parece que funciona. Agora são novas pessoas, e até não mais conseguem imaginar como aguentaram por tanto tempo tudo aquilo e todas aquelas pessoas que agora rejeitam. Até o dia em que, de repente, acordam com o mesmo sentimento de exaustão em relação à luz de um novo dia em que terão de suportar por ainda viverem.

 

Bibliografia Básica

  1. Siqueira, Wagner – “As Organizações São Morais?”, Editora Qualitymark, Rio de Janeiro, 2014.
  2. Siqueira, Wagner – “As Seitas Organizacionais”, Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 2005.

*Wagner Siqueira é Consultor de Organização.