A boa prática da democracia depende de duas condições: das instituições e dos costumes. Onde as instituições são adequadas e os costumes saudáveis, está assegurada a democracia. Exemplo disto são os países da Escandinávia.

Onde as instituições forem defeituosas, os costumes poderão corrigi-los e, então, será desenvolvida uma consciência democrática que corrige essas instituições a partir da prática dos bons costumes. É o caso dos Estados Unidos, que têm instituições ruins, inadequadas, centradas no presidencialismo, mas que os costumes democráticos as preservam e as respeitam.

Onde os costumes são maus, doentes ou disfuncionais, eles poderão ser modificados, alterados e melhorados graças ao funcionamento de instituições adequadas, convenientes, capazes de corrigir e de educar. As instituições têm um efeito pedagógico, didático, educacional sobre os costumes. Lembro os exemplos da Itália e da Espanha: costumes autoritários, culturas despóticas, mas a utilização de instituições adequadas modulou comportamentos, práticas e costumes democráticos naqueles países.

Com nenhumas dessas condições, nem instituições nem costumes, nós contamos efetivamente aqui no Brasil. O que temos é a “cordial” cultura autoritária brasileira. Os nossos costumes autoritários se reforçam através de instituições defeituosas, equivocadas. Costumes que jamais foram democráticos. Forjados por uma tradição da “Casa Grande e Senzala”, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, costumes centrados efetivamente no autoritarismo. Costumes que se perverteram e se pervertem continuamente com as ditaduras, com os maus governos, com as lideranças corruptas e as inadequações comportamentais que cada vez mais estimulam elites descomprometidas a manterem instituições, também corrompidas, nas condições em que hoje o País se encontra.

As instituições democráticas são desmoralizadas sistematicamente: golpes de Estado, constituições que não são cumpridas, leis que não são para pegar, poderes Legislativo e Judiciário desrespeitados permanentemente por um Executivo imperial, invasão de um poder sobre as competências do outro, impunidade e corrupção generalizadas. Estamos pobres, despidos, inteiramente nus para o exercício da democracia. Estamos como um falido depois do desastre total, da falência absolutamente consolidada, que se dispõe a fazer vida nova por meio de   declarações vazias de sentido. Todos falando em democracia, exaltando a transparência e a austeridade, a necessidade de transformação e de modernidade – palavras da moda –, mas  como um  falido, palavras ocas e vazias, sem sentido.

Por onde haveremos então de começar para renovar este quadro de carências democráticas? Se temos esses costumes e instituições, certamente começaríamos pela reforma das instituições, porque elas dependem apenas de atos de vontade das lideranças políticas e do próprio povo. A reforma eleitoral, a reforma partidária e a reforma administrativa, que precisam ter, certamente, como fonte e origem, como símbolo final, a reforma do regime político.

Como começar senão instituindo um mecanismo de democracia efetiva em vez de um mecanismo de autoritarismo, um mecanismo capaz de engendrar por intermédio de seu funcionamento novos e melhores rumos, saudáveis e democratizantes, que possibilitem que instituições forjadas pela inteligência, e costumes, aprimorados pela educação, mutuamente se reformando e se reafirmando.

É preciso refletir sobre a fragilidade de nossa democracia. E o que é democracia senão o governo do povo, pelo povo e para o povo. Sustentam os falsos democratas que tal definição não passa de uma ficção, pois não corresponde a uma realidade objetiva e concreta. E assim tentam reduzir a democracia a uma burla, burlando o povo, encontrando justificativas para suas incursões autoritárias.

Democracia não é governo de um homem, ditador ou monarca. Democracia também não é governo de um grupo, seja este uma classe ou uma casta. Democracia só pode ser governo do povo e de todos nós, pois este é realmente quem rege, embora faça indiretamente por meio de delegados, por meio de representantes livremente escolhidos através do voto. Esta é a essência do que seja democracia representativa.

A primeira condição do que seja democracia, portanto, é a eleição popular, a escolha dos governantes e dos representantes. Não basta, porém, a eleição para caracterizar a democracia. A democracia não se esgota na eleição, pois se assim fosse um monarca eleito, consolidando uma monarquia absolutista, também caracterizaria a democracia. O Imperador de Roma e o Monarca do Império germânico eram eleitos, nem por isso tais situações caracterizavam democracias.

Não há democracia sem eleição, mas há eleição sem democracia. E isto precisa ser a base de reflexão de nossos tempos presentes. O mandato deve ter duração limitada porque, ao contrário, acaba o mandatário por depreender-se da fonte do seu poder, o voto popular, sobrepondo-se à essa fonte de poder. Assim, a vitaliciedade em cargos eletivos e a democracia não são conceitos e práticas que estejam afinados, são conceitos contraditórios, já que não se pode deliberar continuamente, já que o povo deve eleger frequentemente.

Vai mal a democracia quando se começa a murmurar sobre seus incômodos, custos, exageros, a se insinuar a necessidade de se espaçar as eleições, de se prorrogar mandatos, ou de permitir-se reeleições indefinitivamente. É aí que a consciência cívica se obscurece e a vigilância popular se afrouxa. Não basta o mandato popular ser temporário, é preciso também que os governantes, depois de eleitos, procedam sempre de acordo com as ideias, os desejos, as aspirações e interesses do povo que os elegeu. Devem proceder sempre em consonância com a opinião pública. Não há democracia na contramão da opinião pública. Quando não há essa consonância, o povo nem chega a governar, embora eleja os seus governantes. Não teria sido esta a situação vivida pela sociedade brasileira após o encerramento do ciclo militar de 1964? E aí a eleição é um ato imperfeito, incompleto, malogrado, burlado.

A eleição presidencial no Brasil a partir de 1989 é uma burla, um malogro, um ato eleitoral imperfeito, já que concretiza estelionatos eleitorais que se sucedem. Não há democracia, há ditadura eletiva. Não há governo do povo, há autocracia constitucional conduzida pelo Presidente da República. Não se pode romper o liame, a aliança, os laços entre o mandante e o mandatário, entre o dirigente público e a opinião pública, entre o que disse o candidato e o que faz o Presidente. Não é à toa que raramente o candidato eleito executa no governo o programa que apresentou como candidato. E isso se repete nas três esferas de governo.

Está aí implícita uma outra condição: a responsabilidade dos governantes e dos mandatários. De pouco adianta estipular um dever, quando se pode impunemente deixá-lo de cumprir. Se o dever dos governantes e dos mandatários de representação parlamentar é procurar o bem comum e conter os seus atos aos ditames e às determinações da opinião pública, necessário se faz um remédio corretivo, senão um castigo, quando tal não ocorre. Governo irresponsável, que descumpre os seus compromissos programáticos de campanha, embora originário de eleição popular, pode ser tudo, menos um governo democrático. É muito pior, mais danoso e nefasto do que a negação da democracia, porque o governo eleito pela população e que descumpre os seus compromissos é o aleijão da democracia, a sua corrupção, a sua perversão.

Formulados esses critérios fundamentais – eleição popular, temporalidade dos mandatos, obediência à opinião pública e responsabilidade dos governantes – pergunta-se se a eleição presidencial no Brasil, geradora de governos arbitrários e irresponsáveis, governos capazes de furtarem-se ao influxo da opinião pública, pode ser considerada democrática, embora os presidentes tenham sido realmente eleitos?

É triste a conclusão: não há uma verdadeira democracia em nosso País. Como disse – em toda democracia há eleição, mas nem toda eleição gera democracia. Se quisermos “regenerar” os costumes políticos do País, se quisermos a boa prática da democracia, se quisermos uma nova cultura política, há, em primeiro lugar, que se reformar as instituições que nos governam. Mas nos falta consciência dessa necessidade premente, improrrogável e fundamental para construir um novo Estado comprometido com a sociedade cidadã, que efetivamente seja a nação politicamente organizada.