Em entrevista ao jornal Estadão (domingo, 10 de março), com grande repercussão em toda imprensa, o ministro Paulo Guedes declara, dentre outras, que o Congresso tem de controlar 100% do orçamento. O ministro tem toda razão.  Está corretíssimo!

Precisamos de uma maneira essencialmente nova para proceder a elaboração, execução, controle e avaliação do processo orçamentário. No Brasil, o orçamento público não é apenas uma obra de ficção. É bem mais: certamente uma falácia, uma mistificação e, em muitos casos, um verdadeiro engodo político e administrativo.

Sob a perspectiva política é um poderoso instrumento de limitação da democracia. Pelo lado administrativo é um dos mais relevantes fatores de burocratização da máquina pública; de banalização da função gerencial, isto é, da desqualificação do dirigente público como executivo de programas e tomador de decisões; e, certamente, do desvirtuamento da fixação adequada e da concretização efetiva dos objetivos e metas governamentais.

O Parlamento surgiu ao tempo do ‘Rei João Sem Terra’ exatamente para proceder à aprovação do orçamento. Cansados do arbítrio absolutista dos monarcas, os nobres se reuniram em assembleia parlamentar para conter o rei e aprovar receitas e despesas públicas de que se poderia dispor num determinado período de tempo. A partir de então, o Executivo não mais poderia alterar ao seu bel-prazer as fontes de receitas e as definições de despesas. Assim, pode-se dizer que o orçamento é a principal lei votada pelo Parlamento, sua razão de ser, a lei de controle de gestão exercida sobre o governante pelos cidadãos representados no Parlamento.

Ora, o orçamento público no Brasil não oferece há décadas nenhuma limitação prática ao governante no exercício de sua discricionariedade para remanejar dotações, extinguir programas e efetivar despesas. A ampla concessão que as Casas Legislativas municipais, estaduais e federal conferem ao chefe do Executivo para alterar por decreto a composição do orçamento o torna uma mera figura de retórica. A deformação começa pela própria Lei de Diretrizes Orçamentárias, que possui o mesmo peso hierárquico do próprio Orçamento, o que transforma ambas as votações de aprovação legislativa num jogo de faz de conta. Uma altera a outra. Portanto, nem a Lei de Diretrizes delineia parâmetros para a aprovação, execução e controle orçamentário, nem o orçamento propriamente dito se subordina a quaisquer constrangimentos impostos pelo Poder Legislativo.

Sob a quimera de aprovação de emendas pessoais de deputados e vereadores, o Poder Legislativo rotineiramente abre mão de competências políticas inscritas na Constituição para em troca assegurar ao Executivo quase a totalidade do remanejamento orçamentário. Ou seja: aprova-se o nada, já que tudo, ou quase tudo, pode ser mudado. Assim, as emendas aprovadas em plenário não têm qualquer garantia de execução, já que podem até ser extintas por ato próprio do Chefe do Executivo, através de decretos. As emendas aprovadas tornam-se, quando muito, moeda de troca no mercado eleitoral, mas não têm qualquer efetividade prática se contrárias aos desejos do Executivo ou se o seu autor não for ao palácio negociá-las.

Na sistemática administrativa, deliberadas subestimações de receitas e superestimações de despesas tornam, pelo jogo do remanejamento, o orçamento ainda mais maleável aos interesses circunstanciais dos governantes.

Nos Regimes Parlamentares, a não aprovação em tempo hábil da proposta orçamentária ocasiona a derrubada do gabinete e a substituição do governo. Nos EUA, origem do presidencialismo, o residente da República não pode alterar um centavo nas dotações orçamentários sem expressa aprovação do Congresso – obrigatoriamente, o orçamento é a tradução financeira do que o governo irá fazer e a definição das fontes de custeio com as quais conta para financiar investimentos e sustentar despesas.

No Brasil passamos todo o ano de 1994, e o ano de 2003 também, sem sequer dispor de um orçamento aprovado, o que por si só comprova a sua desnecessidade prática. Em qualquer ano sob análise, independente do nível de governo – federal, estadual ou municipal – o orçamento público é de tal forma alterado, ao longo do exercício financeiro, por atos do chefe do Poder Executivo, que o orçamento executado não é sequer uma caricatura do orçamento aprovado pelo Poder Legislativo.

Sob a perspectiva endógena à burocracia do Executivo, o orçamento é um instrumento de poder, que transforma o secretário ou ministro responsável por sua confecção num virtual “czar administrativo” ou “primeiro-ministro” do governo.

Os dirigentes públicos cuidam mais, ao longo do ano, da emissão das reservas orçamentárias e das notas de empenho, da obtenção da autorização para os necessários remanejamentos de créditos e de despesas, e da aprovação de créditos suplementares ou de complementação de despesas do que propriamente da realização das atividades específicas a que estão incumbidos de realizar como membros do governo. Por exemplo: para se comprar uma tesoura, tido como “material permanente”, tantos são os procedimentos e aprovações indispensáveis que o processamento, certamente, é muitas vezes mais caro do que o preço do item solicitado. E, não é improvável, que a compra não seja aprovada em última instância de decisão, sob a alegação fartamente justificada de “contenção de despesas”. Portanto, a tentativa de evitar o mau gerenciamento dos dinheiros públicos impossibilita o bom gestor.

Se o dirigente público não gasta todos os seus recursos orçamentários até o fim do ano, perde o dinheiro poupado e recebe dotações menores no ano seguinte. Daí a gastança desenfreada dos fins de­ exercício e o cancelamento indiscriminado de empenhos, a serem ressuscitados no início do ano seguinte por “sindicâncias administrativas”.

É sempre bom pedir a mais em todas as dotações, na certeza de que o órgão central de orçamento vai fazer cortes à luz exclusiva de seus próprios critérios. A negociação interna do orçamento termina por ser um jogo de forças, de pressão e de prestígio, que nem sempre tem a ver com o verdadeiro interesse público. Por isso, é sempre bom “fazer boa política com aqueles caras do orçamento”.

Os dirigentes públicos espertos gastam todos os centavos de seus orçamentos, precisando ou não zeram cada uma das dotações disponíveis. Esta é uma das causas de as organizações públicas estarem sempre sem dinheiro: nosso sistema orçamentário premia o desperdício e a esperteza, encoraja a mentalidade irresponsável e leviana no uso dos dinheiros públicos.

Enfim, a alteração conceptual e operativa do processo orçamentário no Brasil poderá contribuir decisivamente para a revitalização da Administração Pública.

Wagner Siqueira é Administrador e Conselheiro Federal pelo Rio de Janeiro