A religiosidade do trabalho é a conseqüência inelutável da excessiva valoração que se atribui ao FAZER na disjuntiva SER Versus FAZER, que hoje substitui o paradoxo existencialista SER Versus TER nestes primeiros anos do século XXI. Ao deificar o trabalho, as organizações se transformam em verdadeiras seitas.


Seita é um conjunto de pessoas que professam a mesma doutrina e que tendem a se constituir numa comunidade fechada, de cunho radical e discriminatório. São os partidários de uma mesma causa ou de um sistema de crenças, aos quais se agregam de forma voluntária para se manterem à parte da opinião geral ou do mundo. As seitas organizacionais são as que se desenvolvem na aplicação ao cotidiano da situação de trabalho. Depende de cada um de nós permitirmo-nos seduzir por uma pseudo  religiosidade organizacional que, pouco a pouco, assume o controle de nossas vidas, por meio da adoção de práticas, hábitos, valores e atitudes socialmente compartilhados por todos que plasmam e determinam o comportamento de cada um. A responsabilidade pela propagação desse movimento insidioso de minimização do Homem no trabalho não é apenas das organizações. 

As pessoas também têm parcela substantiva de culpa. Somente a disposição psicológica voluntária de alguém que se permite submeter à substituição do “quem sou eu” pelo “o que eu faço” como critério de avaliação social pode fazer fomentar as condições objetivas para que tal realidade se efetive no mundo do trabalho e no universo das organizações.

Os quadros superiores hierárquicos, como verdadeiros guardiões da fé, fazem o que é melhor para eles e para as organizações que dirigem. No exercício de seus papéis é o que acham que devam fazer para extrair o máximo desempenho. Os empregados, submetidos a uma verdadeira catequese à espiritualidade da organização, devem aprender a conviver com essa nova realidade, preservando a sua incolumidade como pessoa, mas sem correr o risco de perder o emprego num próximo downsizing, a nova forma em que se transveste a Inquisição, agora praticada pelas organizações modernas, que lançam à fogueira das demissões os que ousam renegar os fundamentos da nova ordem.

O desenvolvimento de organizações torna-se mais consistente na proporção em que pretendem cada vez mais extrair melhores desempenhos de seus empregados. Para tanto, precisam agregar os semelhantes para potencializar sinergia, homogeneizar perfis e atitudes psicológicas diante da vida, que facilitem o livre fluxo do trabalho em equipe, sem as discordâncias que possam ser apostas pelos ímpios, isto é, os não convertidos, ou seja, os que não aceitam a prevalência, quase exclusiva, do trabalho na condução de suas vidas. É natural o conflito entre capital e trabalho. Sempre há um razoável nível de tensão quando ambas as partes lutam pelos seus interesses. É ainda a velha luta de classes de que falava Karl Marx.


Há uma diferença intrínseca produzida pela contradição entre salário e lucro. No entanto, as organizações que pretendem funcionar como uma grande família inapelavelmente tentam subordinar os interesses do indivíduo aos do grupo, isto é, da organização. Se você ousa marchar em outro ritmo, é porque não tem espírito de equipe, está fora do time, deixa de ser um dos nossos, “não veste a nossa camisa”. Tal ambiência é altamente propícia ao florescimento de mais uma seita organizacional, por circunscrever o interesse das pessoas ao trabalho, por professá-lo como se fosse uma religião.


As culturas organizacionais que circunscrevem a vida de seus empregados em torno de si pretendem ter superado a eterna questão da contradição entre salário e lucro. Pensam adotar estratégias e práticas gerenciais que representam a definitiva resposta capitalista ao problema da luta de classes. Julgam ter alcançado a plena realização dos seus propósitos, pois tanto os objetivos da organização como os dos indivíduos passam a ser os mesmos. Tais objetivos não são sequer realizados uns através dos outros, mas convertem os empregados à busca dos objetivos da organização como num ato de fé. Estes, uma vez alcançados, representam a suprema realização de suas vidas como pessoas.
As gerências, como os operadores da nova espiritualidade, são estimuladas a extrair da força de trabalho produtividade crescente. E tais organizações assim anunciam as “Boas Novas” para o mundo empresarial, a comunidade acadêmica e o público em geral. Pensam ter alcançado a perfeita aliança entre o indivíduo e a organização, que se consubstancia em resultados excelentes apresentados nos balanços e relatórios empresariais.

         
A conversão dos empregados à religiosidade do trabalho da organização é altamente vantajosa para o empregador. A energia do empregado passa a ser inteiramente devotada à realização dos interesses da organização, como se demonstra pela ilimitada disponibilidade de todos para horas-extras, extensão de jornadas de trabalho nos fins de semana, férias e feriados, e até para participarem de eventos, festas, solenidades e coquetéis profissionais fora do horário de expediente, e até mesmo submeterem-se a treinamento nos dias de folga para não prejudicar o trabalho.

A empresa invade o tempo privado do empregado sem qualquer cerimônia, como se tal atitude espaçosa integrasse o rol de seus direitos e prerrogativas. E assim, em contrapartida, o empregado pouco a pouco doa a sua identidade como indivíduo, dedica cada vez maior tempo e esforço à busca de realização dos objetivos da empresa, reduzindo a sua disponibilidade para desfrutar do convívio com a sua família e com as demais comunidades sociais que lhe propiciam uma vida em plenitude.

Os empregados convertem-se à seita da organização quando a função profissional o que eu faço define a condição existencial da pessoa, isto é, quem sou eu. O ser humano passa a adquirir a sua identidade por meio do que faz, não do que efetivamente seja como pessoa. Só agrega valor à sua identidade pelo que já fez e faz como profissional ao longo de sua vida no trabalho, dando pouca importância às suas características intrínsecas como pessoa humana fora do ambiente de trabalho. O indivíduo passa a ser o que consta em seu cartão de visitas.O valor pessoal de alguém não deriva quase que exclusivamente das realizações constantes de seu curriculum vitae, mas de todas as dimensões de sua existência, que o tornam um indivíduo único e singular.

A cultura das organizações, no entanto, nos impele à superestimação do valor do indivíduo pelo que ele faz e não valoriza de forma adequada quem ele é. As pessoas são muito maiores do que os seus trabalhos. Mas as organizações se recusam a compreender e a aceitar tal evidência axiomática. Sacrificamos nossas famílias e as comunidades sociais por privilegiar o trabalho. Isto é ótimo para a organização, mas péssimo para as pessoas.


Extraído do livro do autor “As Seitas Organizacionais”, Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 2005.