Por que colaboradores relutam em informar à alta direção que um dos produtos ou serviços é um “perdedor”? Por que diretores não conseguem expor ao presidente a total falta de sucesso de uma das áreas da organização?

A inabilidade para desvendar erros e outras verdades desagradáveis advém da cultura organizacional defeituosa e pervertida, que se cristaliza por aprendizagens de repercussões deformadas.

Tais hábitos e atitudes, que permitem a uma organização esconder e desconhecer seus problemas, geram cada vez mais rigidez e impermeabilidade, quando não, falência. No caso de países, o sofrimento inaudito de suas populações.

Há alguns anos, como consultor de organização, vivenciei uma experiência paradigmática em relação a esta questão. A alta direção de uma corporação complexa no Rio de Janeiro decidiu que um determinado produto era um fracasso de vendas e decidiu retirá-lo de linha. Os prejuízos àquela altura eram alarmantes. Logo descobri que, pelo menos, meia dúzia de pessoas já sabiam por muito tempo do problema. Duas ou três delas eram da linha de produção, no exercício de gerências específicas da fábrica. As outras eram gerentes de áreas de vendas e de marketing. Portanto, todas eram pessoas que conviviam com o fracasso do produto no cotidiano. Logo se justificaram para mim que os problemas de fabricação não poderiam ser resolvidos sem vultosos investimentos, o que, na prática, redundaria na perda de competitividade no mercado. Ademais, também alegaram que o produto era a marca da companhia e a menina dos olhos da presidência.

Muitas foram as razões pelas quais a informação desagradável não chegou à presidência mais cedo, o que pouparia prejuízos acumulados em sucessão. Claro, os supervisores e técnicos abaixo nas linhas hierárquicas pressupunham que, com dedicação e empenho, poderiam transformar erros em sucesso. Não compreendiam que não adiantava dar “mais sangue e vida” a um produto que vivia artificialmente. Afinal, ressuscitar é mais difícil do que nascer. Quanto mais se esforçavam, mais aumentavam o problema e percebiam a dimensão do erro original de tentar continuar com o produto. Compreenderam, então, que nada mais havia a fazer a não ser comunicar às áreas gerenciais.

Eles também sabiam do entusiasmo da alta direção pelo produto. Despenderam muito tempo em reuniões com as gerências e, por autoproteção, formalizaram comunicados e memorandos com suas preocupações e certezas da necessidade de finitude do produto. Para a minha surpresa, pude constatar, in loco, objetivamente, a leitura desses documentos, embora comunicassem formalmente a realidade, não causaram qualquer impacto mais significativo.

Os gerentes intermediários leram os questionamentos e os acharam muito dramáticos e exagerados. Como tinham feito os estudos de produção, marketing e vendas, julgaram que os supervisores e técnicos, em verdade, estavam duvidando da validade das análises que faziam para alta direção. Alegaram que precisavam de mais tempo e tranquilidade para “verificar realmente a pertinência das previsões catastróficas que recebiam, e, se de fato fossem verdadeiras, elaborar ações corretivas. Caso informações tão negativas tivessem de ser encaminhadas à presidência, que fossem consubstanciadas em estudos com alternativas positivas de superação do problema, no que assim pretendiam se dedicar”.

Quando finalmente se convenceram de que as previsões eram pertinentes, começaram a soltar as notícias a conta gotas, em doses homeopáticas, dourando aqui e ali a pílula para não ser tão amarga e de supetão. Evidentemente, acautelaram-se e criaram redes de proteção para se protegerem, caso a presidência ficasse muito aborrecida. Reinterpretaram, cortaram e amenizaram os conteúdos dos comunicados dos supervisores e técnicos de linha, resumindo os diagnósticos tão pouco alvissareiros.

Justificaram-me que assim procederam, porque a presidência sempre reclamava de receber comunicados muito longos. O resultado não poderia ter sido pior: a presidência recebia informações fragmentadas, atenuadas, que subestimavam a gravidade da situação, e julgava equivocadamente que as gerências e supervisores tinham controle do que ocorria com o produto, e que o problema logo seria superado, como de costume.

O presidente, mal informado, manteve a sua posição de entusiasmo com o produto. As gerências ficaram confusas e constrangidas, porque não entendiam o inusitado apoio do topo ao produto, muito menos as razões de solicitação de novos estudos para avaliar as dificuldades de produção, marketing e vendas para fazer o que elas já tinham identificado. Recolheram-se e passaram a tarefa de lidar com o problema para as áreas operacionais de supervisão. Diziam que a companhia estava a par do problema e estudando a situação, e mantendo o seu apoio ao produto. Os supervisores ficaram desorientados, “deram com os ombros, porque os ‘homens lá de cima’ devem saber o que estão fazendo” e diminuíram sua preocupação. A companhia entrou em processo de anomia institucional. Foi aí que fui convidado pelo presidente para essa experiência de consultoria tão enriquecedora.

Gostaria de explicar, em linguagem absolutamente telegráfica, que desde sempre me vali, na atuação como consultor, dos conceitos de aprendizagens de repercussão nas organizações e dos modelos I e II, de Chris Argyris, para proceder as intervenções que, à época, julguei adequadas. De pronto, é preciso apresentar definições e conceitos para me tornar mais claro.

A aprendizagem organizacional é um processo de detectar e corrigir erros e equívocos no ambiente de trabalho. Aqui, erro e equívoco passam a ser qualquer traço de conhecimento ou de informação da pessoa que restringe a aprendizagem. Quando o processo capacita a organização a executar suas políticas atuais ou a atingir seus objetivos, deve ser chamado de aprendizagem sem repercussão. A aprendizagem sem repercussão pode ser comparada a um termostato que aprende quando está quente ou frio e, em seguida, liga ou desliga o calor. O termostato é capaz de realizar esta tarefa, porque recebe a informação da temperatura ambiente.

Caso o termostato pudesse se questionar se deveria ficar sempre numa determinada temperatura, seria capaz não só de detectar o erro, mas de questionar os sistemas e metas de operação, bem como o seu próprio programa. Isto equivale a uma segunda indagação, de maior compreensão, que poderia ser chamada de aprendizagem de repercussão. Quando os gerentes e supervisores da fábrica estavam tentando corrigir os erros do produto para manter a sua fabricação, era uma aprendizagem sem repercussão. Quando começaram a enfrentar a realidade e a se perguntar se o produto deveria continuar a ser fabricado, passou a ser uma aprendizagem com repercussão, porque passaram a questionar as políticas/diretrizes, metas/objetivos, normas/padrões e moral/coesão da organização.

Nesta organização, como em algumas outras que me defrontei como consultor ou executivo de topo, pude constatar bem as orientações descritas por Argyris de que se desenvolvem hábitos, práticas e costumes que advertem as pessoas: “ não desafiem as políticas/diretrizes e metas/objetivos, especialmente aquelas com as quais a diretoria está muito comprometida ou empolgada”. Comunicar para cima a verdade sobre o produto fracassado, seria, além de confrontação de um direcionamento organizacional, violar uma norma/padrão da organização. Mas, para que esta norma seja cumprida, ela tem de ser protegida por outra norma que diz: “você não pode questionar abertamente as normas/padrões, que dizem que você não pode questionar políticas/diretrizes e metas/objetivos”. Em outras palavras, a fim de manter a primeira norma ter-se-ia que camuflar ou dissimular muitas informações sobre ocultação do erro. Assim, temos normas embutidas dentro de normas que inibem a aprendizagem organizacional de repercussão (Organizational Learning: a theory of action perspective, Argyris, Chris — Addison Wesley Publishing).

Para complicar a situação — e, é verdade, enriquecer a minha experiência — quando os colaboradores aderem à norma que diz “oculte os erros”, sabem que estão violando outra norma que diz “revele os erros”. Seja qual for a norma de conduta que escolham, sempre tendem a cair em alguma esparrela e confusão. Se escondem o erro, podem ser punidos, caso o erro seja descoberto. Se revelam o erro, correm o risco de se exporem por se emaranharem em uma rede de tramas de camuflagens e até de fraudes. Os colaboradores têm, portanto, um duplo vínculo, porque seja o que for, devem fazer, isto é necessário, ainda que contraproducente, para a organização e suas ações, mesmo que possam até ser pessoalmente contrárias.

Conflitos tão antagônicos criam tensão e estresse. Uma forma usual de defesa é começar a conceber a ocultação do erro, a fraude e os jogos humanos como parte da vida organizacional. Quando o clima atinge este ponto, as pessoas perdem a habilidade de percepção e do significado do erro. Muitos ficam surpresos e até magoados quando acusados de se comportarem desleal e imoralmente por práticas de ocultação de erro.

A camuflagem de erros técnicos é feita por indivíduos que adotam jogos humanos e normas organizacionais aceitáveis. A ocultação de todo erro instrumental importante, portanto, implica na existência de jogos humanos e estes, por seu turno, implicam na existência de jogos para esconder os jogos.

Dessa forma, é bastante complexo e difícil para uma organização ser apta a usar a aprendizagem de repercussão em seu cotidiano operacional e de gestão de políticas e diretrizes, caso ela não as adote nos seus jogos humanos, em suas normas/padrões, moral/coesão e busca de metas/objetivos. Dependendo como são concebidos e praticados, tudo isso concorre para que as pessoas evitem contar o que sabem.

Os colaboradores que estavam a par dos problemas do produto não falaram diretamente porque violaria as regras dos hábitos e costumes e dos jogos organizacionais que todos respeitavam e jogavam no cotidiano. Possivelmente, você talvez me pergunte: como, então, as organizações sobrevivem e se mantêm eficazes?

As organizações costumam ser muito boas em processos de aprendizagem sem repercussão. Uma vez que a grande maioria, a quase totalidade em certos segmentos privados e de setores público brasileiros, é incapaz de crescer e se desenvolver através de aprendizagens ativas de repercussão, os custos são acrescidos aos preços pagos pelos clientes e aos tributos pagos pelos contribuintes. Sempre quem paga a conta final de tamanha irracionalidade gerencial é o cidadão. Quando há limites impostos, por quaisquer razões, à irracionalidade dos preços e dos tributos advém a instabilidade política e econômica, a crise das instituições inermes ao enfrentamento adequado, o aprofundamento das desigualdades e das vulnerabilidades sociais.