Como se explica o fascínio exercido pelos livros de sátira organizacional, até mesmo sobre o público em geral? Será sinal de fraqueza ou sadomasoquismo dos executivos, que parecem aceitar e derivar a satisfação psicológica das criticas contundentes que lhes são feitas? Será a expressão de desalento do cidadão comum contra a desumanização das organizações?
Tais livros parecem indicar o aparecimento de um submundo na cultura organizacional. Na verdade, os livros satíricos divertem, porque não atacam profundamente; ficam na “perfumaria”, na superficialidade, e não na estrutura fundamental das organizações. São semelhantes a alguns programas humorísticos de critica política e social – divertem, mas não deixam ninguém intranquilo quanto à manutenção do status quo e do establisment. Os seus autores, como muitos de nossos consultores-espetáculo, são os bobos da corte das organizações de hoje. O papel deles é parecer crítico, mas nem tanto, para não ferir ninguém nem derramar sangue.
Tais livros fazem o executivo rir de si mesmo, sentir-se recompensado pela sua “capacidade de aceitar criticas”, mostrar-se aberto e democrático.
Na Idade Média, os bobos da corte, como boa parte dos atuais críticos sociais (entre eles os nossos humoristas), restringiam as suas críticas aos “modos e maneiras”, evitando mergulhos de maior profundidade no conteúdo e na substância da realidade social da época. Hoje é a mesma coisa – focalizam-se os efeitos e não as causas, as aparências e não a essência dos males que assolam a sociedade. E assim divertem, mas nada mudam.
Em geral, os autores de texto de sátira organizacional são executivos bem-sucedidos, que se julgam críticos mordazes e radicais das organizações contemporâneas.
No entanto, na verdade, são extremamente conservadores e mantedores do status quo. Eles são a ressurreição da velha ética protestante relativa ao trabalho – acreditam no trabalho duro, no tempo integral e na dedicação exclusiva, na lealdade incondicional à organização e à profissão. São os novos defensores do homem organizacional, de que já nos falava William F. White, em “The Organizational Man”. Acreditam no poder incomensurável e exclusivo da promoção e do dinheiro, e do sucesso daí decorrente. No fundo, esses autores aparentemente modernos e irreverentes denotam um individualismo estratificado e uma ênfase démodée no proselitismo da decantada mística do self-made man e no american way of life.
É preciso que os executivos se precavenham contra a sedução produzida por esses livros, que desviam a atenção da crítica de repercussão e de essencialidade para a galhofa, para o cinismo organizacional, que são justamente os pilares do imobilismo e do conservadorismo. Essa forma de crítica, no fundo, é a consagração da inércia. São textos reacionários, mantedores do status quo e arautos de uma sutil estratégia de dominação e manipulação das organizações sobre seus funcionários.
Não existe ninguém que não goste de ler as tiradas irresponsáveis e demagógicas de um Townsend, ou de Peter, ou de Parkinson, ou do Jay, para falar apenas em alguns dos clássicos mais conhecidos. Eles põem a nu as disfunções e contradições das organizações de hoje, com o que todos nós concordamos. Eles agradam porque quebram várias vidraças; tenho certeza de que não agradariam se minassem as bases ou as fundações das instituições. É a aceitabilidade consentida, que se destina a preservar o atual estado da arte das organizações, a manter inalterado o equilíbrio social, “a deixar ficar para ver como é que fica”. Podem-se criticar tudo, desde que tudo fique exatamente como está.
Townsed, por exemplo, agrada porque valoriza as práticas do empresário raçudo (trabalhar duro, acabar com os “aspones”, eliminar os PHDs). Afirma que as organizações de sucesso o são “apesar de” e não “por causa de” assessores, organogramas, programas de desenvolvimento e produtividade, administração e planejamento estratégico.
Se essas coisas não são importantes, porque então Townsed cuida delas em todo o livro, quando, ao contrário, deveria estudar aquilo que a seu ver constitui a base do êxito das organizações? É claro, o que é importante não é engraçado. Aqui se configura a natureza evasiva, o caráter escapista dos autores da sátira organizacional. Tal sucesso deve-se ao fato deles representarem diversão, numa sociedade centrada basicamente nos 15 minutos de fama, na espetacularização do cotidiano. Passamos algumas horas lúdicas, amenas com eles, mas não os confundimos com coisas sérias.
Em um dos capítulos de seu livro “Viva e Morra a Organização”, Townsed sugere que o executivo telefone, ele próprio, para o seu escritório com o objetivo de ver como funcionam pessimamente as tentativas de um cliente que procura falar-lhe diretamente. Sua conclusão equivocada é a de que o executivo deve despedir a telefonista e a secretaria e atender ele próprio o telefone. E o uso do tempo do executivo? E as oportunidades perdidas? E o exercício de seus papéis e funções essenciais? Que tempo destinará ao futuro, à mudança, à inovação? Como implementará a cultura da mudança na organização que dirige? Que ações realizará para preservar a identidade da organização a que pertence? Quando se dedicará à sua própria equipe de trabalho? Estas questões são inimagináveis para um analista engraçado, porém simplista.
Os consultores são os alvos preferidos de Townsed. Ele afirma espirituosamente, mas sem originalidade, que “os consultores são aqueles caras que nos pedem emprestados os nossos relógios para nos dizerem as horas, e ainda ficam com eles”. Aponta as distorções da função de consultoria, mas desconsidera os diferentes modelos de intervenção, e produz um ataque irresponsável aos consultores. Trabalha com chavões, clichês ou lugares comuns. Os autores das sátiras organizacionais, aliás, são os reis do lugar-comum, o qual exploram oportunisticamente como novidade, “sacação” genial e observação extravagante. Discorrem sobre o óbvio, como se estivessem falando da inusitada descoberta dos mistérios da fé.
Townsed é engraçado. Toda vez que procura alçar vôos mais altos, suas idéias irreverentes ficam perigosas. Quando ele propõe a simples extinção das atividades de relações públicas, de pessoal, de administração de material, de compras , certamente está sendo péssimo consultor, à semelhança, daqueles que tão acremente acusa.
Os autores da sátira organizacional têm, em geral, uma visão estreita e limitante da organização. Eles não conseguem perceber a responsabilidade social da organização e as implicações da empresa moderna na proteção do meio ambiente.
Estão ainda no tempo do laissez-faire econômico, da mão invisível que regula todas as relações da economia. Não acreditam nas imensas possibilidades de transformação social produzidas pela implementação de uma estratégia planejada de intervenção na cultura das organizações.
Parkinson, com a sua famosa lei de Parkinson, afirma que “o trabalho aumenta a fim de preencher o tempo disponível para sua execução”. Em seguida, continua:
“Admitindo-se que o trabalho (especialmente o trabalho com papéis) é elástico em relação ao tempo, é claro que haverá uma pequena ou nenhuma relação entre o trabalho a ser feito e a quantidade de pessoas a executá-lo.”
Assim, Parkinson nos diz:
a) Um chefe está sempre pronto a aumentar o número de subordinados, desde que não sejam seus competidores ou rivais desejosos de tomar seu lugar;
b) Os chefes tendem a inventar trabalho uns para os outros.
Outra conhecida assertiva de Parkinson é a lei da banalidade: “O tempo gasto na discussão de um assunto está na razão inversa de sua importância.”
Por exemplo: o número de cafezinhos a serem servidos na organização, a cor do uniforme do contínuo, o tamanho da letra do letreiro da fachada do prédio são temas que monopolizam os debates em detrimento das questões estratégicas. O acessório é mais importante que o essencial. A forma prevalece sobre o conteúdo.
Parkinson nos propõe a criação de uma nova ciência – a “comissãologia”, isto é, o estudo das comissões e dos grupos de trabalho. Diz ele que uma comissão não é uma estrutura, mas uma planta. Como tal, deita raízes e cresce, espalha sementes que farão outras comissões florescerem no futuro. Ao descrer na sinergia do trabalho em equipe, praticamente nos diz que o camelo é o resultado da disfunção de um grupo de trabalho que pretendia produzir um cavalo. Em determinado momento, Parkinson nos diz que a perfeição da estrutura e do regimento só é alcançada quando a organização está à beira da falência.
Afirma Parkinson, e aí a meu ver com absoluta propriedade, que o chefe medíocre tende a ser uma ilha de mediocridade cercada de medíocres por todos os lados. A sinergia da incompetência tem como resultado a incompetência ao cubo. Assim, todos competem – inconscientemente, é claro – para serem os campeões da incompetência e da estupidez. A cultura da mediocridade passa a ser, então, a resultante inevitável da realidade das organizações e do conjunto da sociedade.
Parkinson termina o seu livro com a idéia da aposentadoria compulsória – “O método moderno de levar alguém à aposentadoria consiste em fazê-lo viajar de avião e preencher formulários. Pesquisas comprovam que a exaustão completa advém da combinação dessas duas atividades.”
O famoso princípio de Peter, de Lawrence Peter e Raymond Hull em “Todo Mundo È Incompetente, inclusive Você”, afirma que “numa organização, um indivíduo tende a subir na escala hierárquica até atingir o seu nível máximo de incompetência”.
Corolário: depois de certo tempo, todos os cargos de supervisão tendem a ser ocupados por indivíduos incompetentes.
Por quem é feito o trabalho e por que as organizações ainda se desenvolvem? Pelos indivíduos que ainda não atingiram os seus níveis de incompetência, mas que em breve lá também estarão. Esta resultante é uma simples questão de tempo. As organizações e as demais instituições da sociedade terminam, portanto, dirigidas por incompetentes e medíocres. Daí a valorização da cultura da mediocridade que prevalece no conjunto das organizações e no universo da sociedade. Ao contrário do que todos afirmam, a sociedade moderna rejeita o talento e estimula e promove o medíocre.
Em plena sociedade do conhecimento, esses autores ignoram a força transformadora da educação e do treinamento profissionais para formar quadros competentes, motivados e abertos à mudança. No fundo, só acreditam no líder inato, não aceitam que a liderança possa ser aprendida, que a competência gerencial possa ser adquirida por meio de processos de aprendizagens, descrêem na inesgotável capacidade do ser humano de mudar, de participar do time que ganha, de se motivar pelo que faz, de engajar-se em busca da realização de objetivos cooperativos e solidários, de ajustar-se ao novo, de extrair do trabalho realização e contentamento, de tomá-lo tão natural como o lazer, se as condições em que o realiza são favoráveis.
Para os autores das sátiras organizacionais, o ser humano normalmente é avesso ao trabalho e só o fará se for constrangido a fazê-lo por meio dos diferentes mecanismos institucionais e psicológicos de estimulação. Tais textos, portanto, revelam uma profunda descrença na natureza humana. Esses textos de sátira organizacional são a resposta reacionária aos conceitos hoje dominantes da prevalência dos recursos humanos no contexto produtivo, da importância do trabalho em equipe e do capital intelectual, da força transformadora da educação como os fatores diferenciadores do sucesso de uma organização.