A distinção de ordens tecnocientífica, institucional-legal, moral, ética e espiritual que nos orientam no cotidiano da vida, nada mais é do que um quadro de referências ou de análise, jamais uma estrutura rígida de enquadramento da realidade.
As ordens estão sempre em interação, são indissociáveis, misturam-se todo o tempo, interinfluenciam-se mutuamente, no gesto que se faz ou não se faz, na trajetória de cada um que se constrói pelos próprios atos. A distinção de ordens não significa a separação entre elas.
Cada uma tem a sua lógica própria, mas nem por isso deixam de agir umas sobre as outras, em permanente processo de inter influenciação recíproca.
Estamos sempre nessas cinco ordens ao mesmo tempo. Mas é necessário distingui-las racionalmente para que possamos melhor pensar, sentir e agir em relação aos fatos que nos envolvem. É a pessoa como indivíduo que tem de enfrentar essas cinco ordens simultaneamente. É preciso sempre considerá-las em conjunto, o que não significa confundi-las.
Duas atividades simultâneas não são apenas por isso idênticas. Por exemplo: escrever e ouvir música. A mesma lógica se aplica também para duas atividades indissociáveis que não são, apenas por isso, idênticas: a necessidade de respirar forte para correr não confunde a respiração e a corrida numa só ação.
Não se trata, assim, de separar as ordens como se não houvesse permanente interação entre elas, mas distingui-las para racionalmente melhor compreender como e porque interagem. A sua adequada compreensão e aplicação contribuem efetivamente para aumentar a objetividade de nossas ações pessoais individualmente e em sociedade.
Quando se renuncia ao “tudo é permitido”, por exemplo, ponto essencial das atitudes e dos comportamentos da “Geração 68″ ou da “Geração Anos Dourados”, coloca-se a questão de saber o que não é permitido.
Sim, “tudo é permitido,
mas nem tudo me convém”.
Perguntar o que não é permitido é colocar o problema dos limites das ordens. O apóstolo Paulo escreve duas vezes sobre o que ele chama de “coisas lícitas”. Na Primeira Carta, Coríntios, capítulo 6, versículos 12 e 13 (parte), ele afirma: “Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma”.
E continua: “os manjares são para o ventre e o ventre para os manjares”. Ainda na Primeira Carta, Coríntios, capítulo 10, versículos 23, 24 e 25, ele retorna à assertiva e diz: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas me convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. Ninguém busque o proveito próprio; antes cada um o que é de outrem. Comei de tudo quanto se vende no açougue, sem perguntar nada, por causa da sua consciência”.
As afirmativas de Paulo colocam claramente os problemas dos limites das ordens. Por mais que alguém se dedique a um estudo profundo da moral e da ética, duvido que chegue a uma formulação tão precisa.
É dessas frases síntese que decorre a compreensão que distingue a civilização da barbárie. A essência da formulação Kantiana também está aí implícita: só posso praticar atos que, se generalizados, concorreriam para o bem.
Ao constatar o comportamento radical dos crentes da Igreja de Coríntios, que a tudo condenavam como ilícito, ou seja, acusavam como apóstatas ou sacrílegos aos que bebiam vinho; ou comiam da carne vendida nos açougues após os sacrifícios; ou usavam vestimentas que não lhes pareciam adequadas; ou usavam penteados e cortes de cabelo a seus veres indecentes, Paulo restabelece as referências pertinentes do verdadeiro crente, que se devem apoiar exatamente nos limites interpostos simultaneamente pelas diferentes ordens que condicionam o comportamento humano: tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Compete a cada um, individualmente, proceder à operacionalização desses limites naquilo que lhe convenha ou não.
O apóstolo Paulo apela, assim, à consciência de cada um, lembrando aos crentes que o Criador assegurou o livre arbítrio à criatura por ele criada à sua imagem e semelhança. O exercício do livre arbítrio se concretiza através da aplicação simultânea à vida de cada um da distinção e dos limites das ordens.
Para muitos teólogos, a palavra pecado, do grego “amarthano”, que quer dizer errar o alvo, tem o significado de violação da própria consciência. Assim, pecar seria violar a própria consciência. Modernamente, Freud se socorre da importância do “superego” para tratar exatamente da mesma questão. É a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente os seus instintos e desejos. É a repressão que se manifesta junto à consciência, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres da pessoa moral, digna, decente e virtuosa.
Santo Agostinho também envereda pela apreciação do problema da distinção e dos limites das ordens. Antes de se converter ao cristianismo, Agostinho era maniqueísta e amigos das farras. Ele nos diz: “Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado. Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurança, as situações isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fome de alimento interior….fome de ti, ó meu Deus”.
Após a sua conversão, Santo Agostinho nos diz: “A finalidade de todas as nossas obras é o Amor. Este é o fim, e para alcançá-lo que corremos. É para ele que corremos, e, uma vez chegados, é nele que repousamos. Deus, nosso mestre, ensinou-nos dois mandamentos principais: o amor a Deus e o amor ao próximo. Neles o homem encontrou três objetos para amar: Deus, ele próprio e o próximo. Ama e faze o que quiseres”. Ele nos diz em interpretação livre: procurei Deus e não encontrei; procurei a mim próprio e não encontrei; procurei o próximo e encontrei os três.
Gandhi também envereda pela análise da força da consciência na distinção das ordens e na interposição de seus limites. Diz ele: “O único tirano que aceito neste mundo é a voz silenciosa dentro de mim, a minha consciência”. Tem toda a razão: nada mais difícil de superar para um homem de bem do que a sua própria consciência, que se limita fundamentalmente pela ordem moral, interinfluenciada pelas demais ordens. A consciência é o mais rigoroso de todos os tribunais.
Não há dúvidas de que os sofrimentos humanos mais comuns nos dias de hoje tendem justamente, e contrário senso, a se desenvolver a partir de um excesso de possibilidades e de permissividades, e não de uma pletora ou profusão de proibições, como ocorria no passado.
A oposição entre o possível e o impossível superou a antinomia entre o permitido e o não permitido como estrutura cognitiva, e o critério valorativo essencial de avaliação e de escolha da definição da estratégia de vida, de construção da trajetória existencial.
O que se constata é que a depressão indiscriminada, que atinge a muitos todos os dias, nascida do terror da inadequação, venha substituir a neurose provocada pelo sentimento de culpa proveniente da acusação de inconformidade que, muitas vezes, se segue ao descumprimento das regras e das normas.
As aflições psicológicas, as síndromes de pânico, passam a ser a características generalizadas das pessoas transformadas em máquinas consumistas na sociedade de consumo e de crédito. A síndrome de esgotamento profissional, conhecido como “burn out”, atinge dolorosamente a todos os que se submetem nas organizações à tirania da urgência, aos contextos organizacionais cada vez mais estressantes.
O burn out se torna crescentemente uma verdadeira epidemia nos mundo das organizações e no seio da sociedade em geral. A síndrome de pânico, tão comum nos centros urbanos violentos, é apenas uma de suas variantes globalizadas mais conhecidas.
Nunca se propalou tanto a essencialidade do homem no trabalho, a nova concepção de gestão de pessoas, os empregados como colaboradores, mas, na realidade, as pessoas não estão mais tanto em consideração. O mundo e a natureza do trabalho se transformam e se desumanizam sob a égide da “profissionalização” e da necessidade obsessiva do “cumprimento de metas”.
É o neo-taylorismo organizacional que agora dá todas as cartas. Jornadas de trabalho cada vez mais sobrecarregadas, em que o empobrecimento das funções decorre de definições cada vez mais estreitas de como executá-las.
A falta de auto-realização na execução de tarefas, cujos desempenhos são cada vez mais regulados pelos procedimentos e processos de trabalho; o individualismo exacerbado; a ausência de suporte ou de apoio social entre colegas, com a desconstrução deliberada e intencional dos grupos informais como elementos essenciais da vida nas relações de trabalho; a inexistência de coesão do trabalho em equipe pela exacerbação do individualismo de resultados; o sentimento de injustiça e de equitatividade entre os distintos níveis de remuneração; a falta de recursos com a imposição insana da redução de custos e, à miúde, até a baixa formação profissional e pessoal de muitos em detrimento da sobrecarga de trabalho para os demais, são alguns, apenas alguns, agravantes para o florescimento e a generalização da síndrome de burn out.
Todas as pessoas são susceptíveis a sofrer de esgotamento físico e psicológico. É evidente que algumas com mais facilidades do que outras. Mas são os executivos ou líderes os que geralmente mais se recusam a admitir que eles também têm limites e que os que mais resistem, são os que mais aprofundam as sequelas e a gravidade desta nova doença que devasta e transforma os seres humanos modernos. E aí todos sofrem: a família, os amigos, os colegas, igualmente vítimas da contaminação do burn out e da precarização da existência humana.
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