Há muitos anos em minhas andanças por universidades brasileiras por todo o Brasil tenho sido interpelado por alunos, professores e profissionais a respeito de minha opinião sobre os exames que são aplicados aos bacharéis de algumas carreiras de nível superior como condição para, se aprovados, acessarem o mercado de trabalho como profissionais técnica e legalmente habilitados.
Passo a expor abaixo algumas das reservas que tenho em relação a essa prática que cada vez mais preocupa os jovens – outros não tão jovens assim – que frequentam as universidades e que temem ver seus sonhos de trabalhar em determinada área interrompidos por rigorosos e restritos exames ditos de proficiência.
Sabemos que compete às Instituições de Ensino Superior, autorizadas e reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC), o papel de formação de quadros de profissionais de nível superior no Brasil. Essa competência se refere às licenciaturas, aos tecnólogos, aos bacharéis e, ainda, à formação de mestres e de doutores.
Transferir essa atribuição para os Conselhos e Ordens profissionais soa como colocar em dúvida a competência dessas IES no que diz respeito à preparação dos profissionais. O que está errado, então, é a formação propiciada pelas IES, fonte e limite do problema da má qualificação profissional no Brasil. Ora, por que não capacitá-las e supervisioná-las efetivamente para que cumpram o seu papel institucional?
Colocar os Conselhos e Ordens Profissionais para cumprirem esse papel representa que o MEC abdica de suas competências institucionais em favor das entidades classistas, cujo foco institucional deve ser o profissional formado no exercício do trabalho e não na qualificação do estudante durante o seu curso de formação. Os Conselhos e Ordens profissionais não são apêndices ou sucursais do MEC para suprir, na sua ausência e incapacidade, uma deficiência flagrante que o próprio MEC se mostra incompetente para equacionar adequadamente.
Por que não questionar o próprio MEC por desídia e omissão no desempenho de suas competências e responsabilidades? Se o MEC não sabe ou não cumpre o seu papel que aprenda a fazê-lo. É o MEC e apenas o MEC que tem a responsabilidade de constantemente avaliar a qualidade dos diversos cursos de nível superior; é ele próprio que os autoriza e reconhece; que lhes garante legalidade e legitimidade na concessão de seus diplomas. Será que os Conselhos e Ordens, em apenas um exame de suficiência em processos massivos de seleção, têm mais capacidade objetiva de afastar do mercado cidadãos profissionalmente incapazes, pois mal formados para o desempenho de determinado ofício?
Seriam os Conselhos e Ordens mais competentes em avaliação num só exame de suficiência do que a universidade em que esses mesmos cidadãos passaram pressupostamente milhares de horas em processo de formação profissional? Em especial quando os processos seletivos de que ambos se valem (academias e entidades profissionais) são os mesmos, academicistas e teóricos, meras repetições de suas estruturas de conteúdo e de forma de seleção. As provas de suficiência são da mesma natureza dos exames vestibulares de seleção para o ingresso na universidade. Os cursinhos para o vestibular se repetem nos cursinhos para exame de ordem; a literatura técnica é sempre a mesma, apenas variando nos apelos mercadológicos de venda de livros e de compêndios de uns e outros, sempre prometendo aprovações miraculosas. E as provas utilizadas são de mesma natureza e na mesma direção e sentido.
Até que ponto esses exames, por imprecisão em suas aferições e métricas, não alijam do mercado de trabalho profissionais que possuem certas competências, habilidades e atitudes que são, muitas vezes, expressamente demandadas e valorizadas pelo mercado, mas absolutamente não captados pelo tipo de exame academicista que se repete sucessivamente nos mesmos testes de seleção, tanto no sistema universitário como nos realizados por Conselhos e Ordens? Não esqueçamos: os que preparam os exames de suficiência dos Conselhos e Ordens são, o mais das vezes, os mesmos profissionais das áreas respectivas que desempenham funções de magistério nas universidades. Se falham no ensino, na formação e na seleção de seus alunos nas faculdades, por que não o fariam também de forma defeituosa na preparação das questões seletivas das provas de suficiência? São quase sempre os mesmos, lá e cá, ora como professores das universidades, ora como profissionais membros das juntas de seleção dos exames de suficiência.
Devemos levar em consideração que uma prova não é capaz de aferir tudo o que o profissional conseguiu apreender nos bancos escolares. Estamos falando de conhecimentos formal e tácito, de técnicas e de vivência profissionais, de elaboração intelectual de um projeto e da importância de relacionamento com os demais interessados em determinada atividade. Um exame de duas horas pode no máximo ser muito eficiente em apontar aqueles que foram competentes o suficiente para decorar e entender o que está nos livros e apostilas de cursos preparatórios para essas provas. Há que se ter cuidado para não tirarmos do mercado de trabalho profissionais que são destinados a ocupar segmentos da economia (micro empresas, por exemplo) ou a trabalhar em regiões que embora não tenham tanto destaque na mídia fazem parte da cadeia produtiva e, portanto, precisam de mão-de-obra que razoavelmente dê conta do recado.
Se os exames de proficiência forem obrigatórios e se destinarem a privilegiar apenas os “profissionais excelentes”, corremos o risco de ver o Brasil desabastecido de profissionais que, mesmo não sendo brilhantes academicamente, podem ser úteis em diversos estratos sociais importantes, se, evidentemente, tiverem formação profissional ajustada às necessidades de mercado e não às necessidades da academia, como hoje se faz já que essas provas de ordem focam primacialmente o conhecimento teórico acadêmico. Esses exames de ordem são uma ode ao anacronismo na sociedade do conhecimento. A obsolescência do conhecimento é inexorável, que se inicia no dia posterior à realização do exame de ordem.
No âmbito do Sistema CFA/CRA discute-se a aplicação de uma prova, não obrigatória, que possa conferir aos profissionais esse tipo de “certificação de qualidade” em áreas específicas da Administração: recursos humanos, logística, finanças, marketing, gestão ambiental, etc. Mas ainda não há previsão para o início desse exame de proficiência que, defendo, deve ser facultativo e, repito, apenas e simplesmente uma certificação não obrigatória, de opção explicitamente facultativa.
O Sistema CFA/CRA-RJ tem que lutar pela denúncia e pelo fechamento das entidades educacionais deficientes no ensino de Administração. Não pode continuar a vê-las como nacos generosos de consultoria acadêmica a serem compartilhados pelos “enturmados” no MEC e com os donos dessas faculdades deficientes, máquinas caríssimas de má formação profissional.
Afinal, esses projetos de consultoria, o mais das vezes, acabam apenas por dar uma sobrevida ao que já não mais podia existir, sem promover qualquer melhoria efetiva do desempenho acadêmico, mas tão-somente, e nem sempre, apenas dando-lhes cumprimento dos ritos e dos formalismos academicistas tão em voga na pesada, empoada e lerda burocracia do MEC.
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